2009-06-30

(anacronismos)

Os acontecimentos seguintes passam-se num tempo que não o tempo presente e são as crónicas de dias perdidos nesse tempo.

Iouis dies:

Após a tempestade vêm aguaceiros leves. Não reparei na bonança quando ela passou aqui ao lado. Ignorei-a. A chuva permite andar descalço na estrada, não é tão mau quanto dizem. E sozinhos lutamos melhor pelos nossos direitos à sobriedade alheia.

“Abre os olhos”, dizem-me sem abrir a boca. Parti os dentes. Os acontecimentos não voltam a passar-se. Passei-me!

É como se vivesse sob influência de um efeito borboleta em piloto automático, onde abdiquei das outras personalidades para ser novamente só Eu. Estou furioso, descalço, na rua. A rua leva-me directamente à casa partida em quatro bocados de vários tamanhos que forma uma nova casa onde a luz do sol tem dificuldade em penetrar. Na sombra de uma das paredes escrevi uma vez numa letra minúscula: “EU SOU EU”. Limpei o pó e lá estava a frase escondida. Se tivesse sido um sonho, diria que era uma mensagem a dizer que Eu ando escondido debaixo de camadas de pó e terra e lixo.

Imaginei então que Eu, Ego Euich Jeiyo, era esse bocado de parede partida, obrigado a passar os meus dias, imóvel, como uma frase. Apercebi-me que Eu já não sei quem sou e já não sei quem é quem, tendo perdido o direito a dizer o que quer que seja. Devia tornar-me mudo, penso, enquanto sinto as rugosidades da parede nas minhas mãos. Não é a primeira vez que penso nestas coisas. Aliás, penso que nunca pensei numa coisa apenas uma vez assim como penso que nunca pensei nessa coisa uma primeira vez. A parede tem cores feitas de pó. Tenho medo de entrar pela porta, tenho medo de olhar pela janela. Olho pela janela, sempre é mais fácil que entrar pela porta. A janela está bloqueada por um objecto no interior que faz com que não consiga ver nada. Resta-me a porta. Se tenho medo e estou melhor cá fora porque me vou fechar?

Estou dentro da casa virado para a porta. Como vou sair? Tenho medo de abrir a porta.

É como quando o som está muito alto e julgamos ouvir chamar por nós mas estamos surdos por dentro.

É como se todos os sentidos se desligassem e quiséssemos brincar aos deuses. Deuses do faz-de-conta.

É como se não quiséssemos ouvir as nossas próprias verdades que saem num momento inoportuno da boca.

É como se num momento de lucidez absoluta a Loucura tomasse conta de um corpo, revirasse os olhos tornando-os brancos, o corpo entrasse em transe e a voz destrutiva de deus clamasse por vítimas inocentes. Um deus que se apodera das vítimas sugando-as, primeiro no interior e depois de sorvida toda a energia, se virasse para a carcaça vazia.

É como se deus existisse na sua infinita maldade.

É como se Eu não existisse.

(Mas nem deus nem Eu existimos. A verdade é que custa dizer a palavra “Desculpa”.)

Dentro da casa a porta abre-se. Lá de fora vejo outra casa igual com quatro paredes partidas. A porta que se encontrava aberta possuía um poder de sucção maior que esse deus que ainda há pouco estava presente, leva-me para um espaço em muito semelhante.

Era um rio, estava lá uma Utopia. Ela contou-me segredos mas decidi ignorá-la. Atravessei em águas pouco profundas e fui ter ao carreiro que começava do outro lado, no lado esquerdo da margem para onde o rio corre. Estava tudo como Eu queria contudo fui forçado a voltar para a casa partida em quatro paredes.

Vejo com os olhos de cego o destino.

Lunae dies:

Vi o meu corpo transformar-se num objecto abstracto, semi-animal, semi-natureza morta. Apesar de me sentir vivo, um vazio ocupava a totalidade da minha mente, tornando-me um vegetal estampado para o exterior. Não me conseguia mexer. Nada se mexia a não ser eu que não passava de objecto inanimado no chão verde. Eu também era verde mas não era um vegetal. Era algo amorfo com conteúdo. Era uma criança crescida. Era vazio sem ser oco. Era um livro aberto numa página em branco.

Mercurii dies (ou dia nenhum):

Calmo, controlo a respiração para que ela não me fuja. No calor do dia me refugio, na frescura da noite me revelo. Mentalizo-me; eu não sinto nada. Está tudo na minha cabeça. Acalmo-me um pouco… estou melhor. No entanto a minha cabeça não se convence e daqui a uns dias voltará a manifestar sintomas de um desequilíbrio. Eu tenho o poder para controlar estes sintomas. Afugento-os com uma vara. “Até NUNCA”, digo-lhes… “até nunca”… eles não voltarão. Nunca mais.

Lunae dies:

É hoje. Ontem não o foi porque passou à frente…

Chamam-lhe pôr a carroça à frente dos bois.

Martis dies:

Num minuto estava em casa e no minuto seguinte estava na ladeira com o homem velho. Estávamos a olhar para a casa de vermelho ocre, casa esta abandonada. O homem velho retirou do bolso das calças velhas um pequeno saco de plástico transparente cheio de chaves antigas, umas de tons dourado, outras com um tom de bronze gasto. Disse-me que as tinha encontrado à porta, num caixote do lixo. Desaparecemos reaparecendo no segundo seguinte em frente à porta de entrada, feita de madeira e com a parte superior em arco. O homem velho abriu o saco do qual retirou uma chave, a maior que lá se encontrava. Meteu-a na fechadura, rodou-a e imediatamente se ouviu o barulho do trinco a abrir. Já nos encontrávamos no interior numa espécie de salão com soalho de madeira. O salão tinha quatro portas e duas passagens para outras divisões anexas onde se viam janelas sem vidros. Ele retirou um molho de chaves e foi abrindo cada uma das portas daquilo que vim a descobrir serem quartos. Todo o piso da casa estava desprovido de mobília sobressaindo o soalho de madeira, sujo e podre. Cheirava a mofo.

O homem velho disse-me que o seu pai trabalhava com alhos, transformava os alhos em pó… fazia alho em pó.

Ouvimos um barulho e olhámos para o tecto. Este tinha buracos por onde um homem, outro homem, observava os nossos movimentos. Imaginei que já o fizesse há algum tempo. Estávamos de volta à porta da casa, o homem velho e Eu, subimos um lanço de escadas de cimento até ao primeiro andar, onde de novo a porta se encontrava fechada.

O homem velho afirmou que não tinha a chave deste andar mas o homem que estava lá abriu-nos a porta e convidou-nos a entrar. Estava a arranjar esse piso. Falou-nos de como tinha ido lá parar. Não tinha casa e aquela foi a que encontrou. Então começou a torná-la confortável para si. De facto este piso encontrava-se em melhores condições que o de baixo.

O homem disse que estava a morrer. Quando o disse eu estava novamente na ladeira em frente à casa. Desci a ladeira e encontrei um campo de trevos. Procurei um com quatro folhas. Encontrei-o mas tinha uma das folhas, possivelmente a quarta com um buraco, comida pelos bichos. Mesmo assim decidi levá-lo ao homem. Não consegui chegar lá.

Lunae dies:

Chegada…

Aterro no abrigo e lá me deixo estar.

Mercurii dies:

Gone out…

Aqui só há apatia. Aqui só há catatonia… quão paralisado estou?

Bloqueado para escrever ou para outra coisa qualquer. São palavras cruzadas entre linhas em branco. Afinal, nem as linhas existem. Tal como eu. Faz dias que me sinto assim, inexistente. Mostro cada vez mais de mim e menos da minha realidade

Milhares de sombras que me assombram.

Está frio no calor do dia.

Eu tenho frio!

Ter frio de calor é como se o frio estivesse lá para o meu egocentrismo.

Não fosse eu o Ego.

Só vejo “pseudos”.

Eu sou um deles. Estou congelado. Meto-me no buraco, o espírito abandona-me…

Uma casca vazia…

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