Cartões às costas e
pernas ao caminho. Parei aqui, sentei-me nas escadas debaixo do alpendre, encostado à coluna.
Cartões no chão, uma beata daí apanhada, uma bela beata de quem não gosta de
fumar ou de quem não teve tempo para o fazer. Caixa de fósforos, um fósforo.
Desinfectei o filtro com a chama, acendi a ponta antes que o fósforo me
queimasse os dedos. Após o merecido descanso, a árdua tarefa de armar tenda de
papel para aqui pernoitar. A brisa que corria ao início da tarde irritou-se e
transformou-se num vendaval tornando a minha tarefa digna de Hércules. Passada
umas horas é noite, o frio açoita-me as orelhas, as mãos, os pés. Impossível
manter os cartões em pé. Resta-me usá-los como cobertores. Adormeço com o meu
estômago a rugir ferozmente por comida e com medo que o gelado ar me provoque
ulcerações ou pior.
Não sei que horas
eram quando ouvi o barulho. É complicado discernir o tempo quando ele é
instável, quando parece parar ele acelera, e vice-versa. O alpendre do prédio
onde me abriguei estava todo escuro à excepção de uma linha oblíqua rasgada pela
luz de um candeeiro na rua. Era nesse rasgo que se encontrava um perfil desfigurado
de um homem visivelmente sem-abrigo, como eu. Os olhos sobressaíam, não sei se
sorria ou se estava zangado. Os traços deste vulto desapareciam, contorciam ou
camuflavam-se no breu ao menor gesto. Não parava de olhar. Comecei a ficar
assustado. Levantei-me, nervoso.
“Não bás embora.
Este é o meu sítio, percebes? Mas não precisas de ir embora, é bom ter
companhia.”
“Desculpa. Não vi
aqui nada quando cheguei, pensei que estava desocupado.”
“Desocupado não tá
como podes ber. Se andasses por aí há muito tempo saberias que este lugar
sempre foi meu, podes perguntar a quem quiseres. As minhas coisas não tão aqui
porque andam sempre comigo, percebes? Não quero que mas roubem, percebes?
Durante o dia ando a badiar pelas ruas mas à noite, quando o frio aperta, benho
pr’aqui. Tá aqui o meu nome na parede, bês?”
Apontou para a
parede mas não vi nada. Os meus olhos habituavam-se já à pouca luz existente
mas era, ainda assim, insuficiente para distinguir na parede o que quer que
estivesse ali riscado. No entanto não consegui deixar de reparar na aprimorada
e bizarra estrutura onde o homem se encontrava. Não deixava de ser uma barraca
improvisada mas tinha um aspecto sólido e cómodo, mais resistente que uma casa
e igualmente aconchegante.
“Bejo que cobiças a
minha casa. É ela a razão por que nunca deixo nada para trás. Não quero que ma
roubem, percebes? Tem tudo que eu preciso. É forte, impenetrável, como as bontades,
percebes? Demorei a construi-la, chamaram-me maluquinho e tudo mas agora quem
se ri sou eu. Todos a inbejam.”
“Eu não invejo a tua
casa. Tenho frio, só isso, e parece-me um sítio abrigado. Nem sei como
conseguiste pôr isso em pé. Passei horas a tentar equilibrar os meus cartões. E
tu, no meio deste vendaval, conseguiste armar a tenda e nem se mexe. Mas do que
é feita, mesmo? Só vejo bocados de papel agregados.”
O homem começou a
olhar para mim desconfiado, reflectia, primeiro em silêncio, como se decidisse o
futuro do planeta, depois murmurando baixinho enquanto abanava a cabeça e o dedo
indicador numa direcção e depois na outra. Calou-se. Olhou-me de cima a baixo e
logo disse que podia passar a noite ali desde que não fizesse mais perguntas
sobre a casa.
“Aproxima-te e
encosta-te deste lado que as minhas paredes protegem-te do vento.”
Vi a sua cabeça
desaparecer no papel. Seria melhor entrar mas não consegui pedir-lhe.
Encostei-me ao sítio que ele me aconselhou e deixei o frágil sono voltar.