2008-10-29

Mercurii dies

Mercurii dies:

O Passado persegue-me; tenho que fugir dele a toda a hora: tarefa difícil, já que estou morto. Mais difícil é aturá-lo com os seus “bla blas”, garanto que com o seu paleio consegue acordar os mortos…. É chato, chato, chato… Veio ter comigo só para me contar coisas que tento esquecer para tentar mais tarde, se possível brevemente, viver em paz comigo. E o Passado é uma pessoa que não se conforma com nada. Tem que controlar, estar por cima da situação. Eu sei que carrega nele as frustrações de toda a gente mas também deve haver temas mais interessantes para falar. Podia falar de coisas felizes por exemplo. Isso para mim seria óptimo. Encontro-me aqui imóvel, logo seria bom ter alguém que falasse comigo mas pronunciar essas coisas…. Essas coisas não devem ser ditas nem pensadas, por isso é que são coisas. Indefinidas… Cala-te Passado… fui obrigado a dizer-lhe das boas. Com ele é sempre a mesma história. Mandei-o embora para fazer as coisas dele, se bem que ele não faça coisas. Vou viver por um bocado e já volto. Começo a gostar destes escapes.

2008-10-28

Lunae dies/ Martis dies

Lunae dies/ Martis dies:
Estar morto é ao mesmo tempo libertador e castrante. Libertador porque estando morto deixo de ter deveres e castrador porque morto não posso mover-me, ter ideias, relacionar-me com pessoas (a não ser que estas estejam também mortas, claro). Não tenciono estar morto muito mais tempo, tornou-se aborrecido para mim. No início até foi interessante mas agora começa a esgotar-me a paciência. Os insectos são as criaturas que mais me atormentam. Detesto quando eles andam dentro de mim a fazer-me comichão e cócegas. Odeio o prurido sobretudo porque as cócegas até dão para rir. Mesmo que às vezes os insectos não estejam em mim, se penso que estão, começo logo a coçar-me todo e a sacudi-los. Torna-se irritante e eu torno-me irritadiço.
É óbvio que nem sempre estou defunto senão não conseguiria escrever. O passado ensinou-me muito. As minhas descobertas fizeram-me praticamente invencível embora todos os meus estados tenham também consequências. Por exemplo, quando descobri que sou apenas um personagem manipulado isso devastou os meus sentimentos fazendo com que diminuísse de tamanho. Agora sei que fui eu que provoquei esse estado e se quisesse poderia ter-me tornado um gigante. Preferi estar morto em vez disso (não chateio ninguém, ninguém me chateia). Estou sozinho.

2008-10-27

Solis dies

Solis dies:

O dia do sol em que faz sol.

Está frio na cama mas estou levantado por isso não sinto o gelo do cubo no copo. O gato branco mia, o pássaro canta, os cavalos relincham, os pássaros chilreiam. O meu sangue é frio. Estou ao sol para me aquecer. Já não sou pequeno, o meu tamanho voltou ao normal. Sei que estive pequeno porque não resisti a espreitar o passado… depois cresci, penso que foi durante o sono, julgo ser consequência do sonho. Deve ser da idade.

É nestes dias que começo a pensar na morte. Na minha morte… Poso dizer que já morri e foi bom.

2008-10-23

Dia 244 a 388

Dia 244 a 387 (Martiis dies):
Manchas! Pequenos borrões de tinta entornada formam padrões daquilo a que eu antes chamei memória. Um dia após o outro, as percepções do mundo que estava lá fora, mesmo cá dentro, confundem-se com a atmosfera em que se eleva o ar, carrega o som, traz a luz. O que não existe. Eu, amaldiçoado ser, desejo de certo modo que estes dias não tivessem sequer existido. Não estou a dizer que eles não existiram, nem quero afirmar que existe uma lacuna no tempo, impossível de preencher, independentemente da razão, devido a um capricho meu. O que quero dizer é que esta condição de liliputiano me afectou, dando prioridade às sensações, onde causou grande impacto. É apenas isto que quero lembrar deste espaço de tempo. A isso vou referir-me nas próximas linhas da minha inconstante crónica. O papel de nada serviu a não ser para garatujar pedaços de pensamentos e nada de uma acção concreta. Sem números a guiar-me, sem razão. E eu sei que sou o Ego, mas fui-me transformando num ser abstracto, disforme. A reclusão neste lugar deu os seus frutos que amadureceram e apodreceram. Tenho noção da minha realidade mas conheço os seus limites.
O meu corpo em formaldeído…
Os parágrafos incompletos…
A morte…
A conclusão:
O Crepúsculo e a Aurora eram meus amigos. Já não sei quem abandonou quem mas a nossa relação perdeu-se. Tudo começou quando eu era ainda um jovem petiz com vontade de explorar o mundo. Foi nesse tempo que conheci o Crepúsculo. Devo confessar que me apaixonei platonicamente pelas suas cores e pelo mistério que o envolvia. Com ele, e depois dele tudo seria possível no mundo das luzes artificiais. A Aurora conheci um pouco mais tarde, quando o Crepúsculo não me trazia nada de novo. Por ela apaixonei-me perdidamente… Vivemos infinitas horas juntos e sempre esperei por ela. Fui eu que os apresentei. Fico feliz por isso. Juntei-os… Eles agradeceram-me… Vivemos muitas noites, os três, inseparáveis. Um dia comecei a cansar-me… Foi o início do fim. Não é propriamente do fim que estou à espera. Perdi-os, os meus melhores amigos e confidentes.
Às vezes ainda sonho com eles, apetece-me correr para eles, mas tenho medo de ir a correr ao seu encontro. Sinto especial falta da Aurora e vejo-a muito menos que ao Crepúsculo. Eles eram os meus amigos. Adoro a Aurora… Sinto tanta falta dela, das suas conversas.
Às vezes ainda os encontro na noite. Eles evitam-me. Quando passo por eles mostram-me tanta indiferença como eu mostro às suas faces. Penso que desde que os deixei separaram-se. Não sei se continuam a encontrar-se. Talvez, algures, através do olhar de um novo Ego eles se unam mais, uma vez, só mais uma vez, no seu ciclo. Eu estou morto…

Mercurii dies:
Torpe corpo este que aqui jaz, penso eu ao acordar. Poderia chamar-lhe dia 388 mas este dia não tem número; aliás tem o número 0. Zero porque aqui tudo recomeça.
Eu sou o Ego.
Achei-me morto, infelizmente apenas estava latente nesta carcaça. A carcaça é a minha. O meu corpo neste leito, dormente. Eu acordo. Nunca adormeci. Parece que simplesmente deixei de existir. Neste espaço existo mas não existo. Pessoalmente não importa. Estou sentado num café. Antes disso um recomeço, um sentido. Era o que tinha antes de me dedicar a detective da minha personagem e as conclusões foram devastadoras para este ser inexistente: eu, o Ego.
Os factos foram estes:
Nasci dum modo em muito semelhante a este que me traz de volta ao mundo. Este mundo é o mesmo que o teu mundo. Pensei mudar de nome. Pensei lavar a cara. Esta estava imunda, cadavérica, cheia de chagas. Eu esqueci-me daquilo que sou e o que represento. Vizinhos. Faces limpas. A solidão de existir inexistente. Clamam as vozes um novo início. Eu recuso-o. As vozes continuam a gritar. O instrumento dá o ritmo do texto. Eu ouço a campainha. Parece natal mas não é. Foi aqui que me perdi.
Só agora é que me encontrei.
Tropecei nas malhas do destino onde fiquei preso. Abri caminho à dentada. Com os dentes fincados cada corda se rompia mais um pouco assim como a minha memória. A minha memória tornou-se apenas naquilo que já está escrito. Preferi esquecer o passado. Não o quero reler, relembrar.
Sou novo, igual, diferente, velho. Quantos dias (no sentido de dia enquanto espaço de 24h) passaram? 141 dias. Cento e quarenta e um dias comatosos em que hibernei. Descobri que o desejo de José Gomes Ferreira pode ser realizado. Suicidei-me vários meses. Não 6… nem tanto…