2013-05-02

Caderno I

O Ego morreu, mas não sem antes deixar em testamento a tarefa de serem publicados, atempadamente no seu espaço, os cadernos que acompanharam o blog.
Os delírios de um louco ou o diário de uma rapariga de dezasseis anos.
Escrita pobre acompanhada de gatafunhos.
Fica o primeiro caderno. Seja feita a sua vontade...


2012-11-01






Atravesso a fronteira pela última vez. O barqueiro rema lentamente, com força e ritmo. No rio, só as alforrecas e as gaivotas. O céu azul, com o véu translúcido da manhã, contrasta com a água verde escumada.
O sol começa a surgir na manhã. O som de remos na água embala-me. Não tenho medo de ser apanhado na fronteira. Perdi o medo. A viagem é longa até à cidade onde as sombras dançam nas paredes à noite. A beleza bizarra das alforrecas. O seu veneno. Foi este o momento em que decidi morrer, pagar o derradeiro preço pelo meu crime. Sou uma vítima do meu crime.

Tiro um papel do bolso. Uma mensagem para ti, de mim, de ti para mim. Nunca pensei entregar-ta. Desdobro-o. Diz:

“Pega-me na mão.
Leva-me contigo a sítios que nunca imaginei ir, a lugares onde julgava impossível voltar. Deixa-me seguir as linhas que torneiam as formas desejadas, terras antes descobertas. Não por mim. Autoriza-me a perder-me nesse mundo carnívoro. Funde-te comigo. Compõe o teu corpo do meu, faz de mim humano.
Risca-me com giz no chão. Levanta-me e ri. Chora um pouco, fica sempre bem. Vitimiza-me. Preenche-me, urbaniza-me. Esculpe-me, leva-me, chama-me. Grita por mim. Quero ir. Quero sair daqui. Isola-me. Prende-me.
Foge de mim.
Foge comigo.
Mata-me.
Morre comigo.
Hoje fui à tua procura. Fiquei em casa. Hoje vi-te. Fechei os olhos. Fizeste um gesto. Não percebi. Estavas a olhar para mim e não me vi. Desapareci. Tornei-me árvore. Não dei frutos. Viste-me. Estou aqui.”
Percebes agora?
Não sei se percebi. Já não importa. Decidi morrer. O meu ego já está morto há muito. Não há nada para eu viver. Só restam páginas de má escrita onde não consigo mover-me de olhos vendados.
Quando decidi morrer, o cérebro, talvez numa tentativa frustrada de chamar o corpo à razão, começou a bombardear-me com imagens de memórias. Nostalgia. Não, não é a palavra adequada. Saudade? Não, não é isso. Desejo? Sei lá. Continuas a assombrar-me porque eu deixo.

O barco oscila na ondulação dos outros barcos, maiores. O som dos remos na água, o som da água sob os remos.

Na travessia, penso na solidão. Na solidão, tornei-me misantrópico. Preguiça, Crepúsculo, Aurora, todos os outros… nunca mais os quero ver. Abandonaram-me.
O som da água. Está a chover. A chuva vem do céu azul.

Falta pouco.

Falta tão pouco para chegar.
A margem.
Enjoado, enojado.
A água.
O meu corpo na água.
O barco sem passageiro.
O respirar, o bater do coração.
O meu corpo deitado num campo de malmequeres.
A subtracção do corpo deste espaço bidimensional.
O silêncio do vazio.
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2012-05-09


“Escreve! Escreve, esferográfica.
Liberta-te. Sai, tinta. 
Não queres sair? Sai.
Cala-te! Escreve, caneta.
Cala-te e escreve.
A tinta quer sair!
Não há nada a dizer. Escreve!
O que é que eu ia dizer?
O quê?
Porque é que __ ____ ___? ____ ____. 
Perguntas? Respostas. ___ ___.”
Não percebo nada do que escreves. Que caligrafia horrível, sintaxe e vocabulário paupérrimos. Vá lá, escapa a ortografia e a semiótica. E isto, é o quê?
“Do_. Sing-sing-along. Peixes. Aves. _________s, não nin__. Homens. Filmes. Homens. Músicas. Passado.
 Tenho um cancro que não é palpável. É como se a dor proveniente da zona dos pulmões fosse apenas um efeito secundário do movimento do coração, enquanto força as costelas, para poder escapar e, dessa forma, eu me possa tornar insensível. Se pudesse falar com o meu coração dir-lhe-ia para sair pela boca, estou habituado ao vómito. 
Pânico!
Faz-me lembrar a história da miúda a quem as dores imaginárias afectavam as costas, como se asas lhe fossem irromper pelas escápulas. Imaginava que todas as pessoas se tornariam aladas, não desde a nascença, talvez na adolescência, quem sabe. Nessa fase, tal como quando caem os dentes de leite, penas irromperiam das costas e certos sintomas evidenciariam a metamorfose.”
Não te percebo. Não compreendo nada. Fui eu que escrevi isto ou foste tu? Eu não fui, tu próprio disseste.
 Como se escreve o indescritível ou se diz o indizível sem o verbalizar ou redigir?
Estando calado, quieto.
Sei o que penso.
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