2012-11-01






Atravesso a fronteira pela última vez. O barqueiro rema lentamente, com força e ritmo. No rio, só as alforrecas e as gaivotas. O céu azul, com o véu translúcido da manhã, contrasta com a água verde escumada.
O sol começa a surgir na manhã. O som de remos na água embala-me. Não tenho medo de ser apanhado na fronteira. Perdi o medo. A viagem é longa até à cidade onde as sombras dançam nas paredes à noite. A beleza bizarra das alforrecas. O seu veneno. Foi este o momento em que decidi morrer, pagar o derradeiro preço pelo meu crime. Sou uma vítima do meu crime.

Tiro um papel do bolso. Uma mensagem para ti, de mim, de ti para mim. Nunca pensei entregar-ta. Desdobro-o. Diz:

“Pega-me na mão.
Leva-me contigo a sítios que nunca imaginei ir, a lugares onde julgava impossível voltar. Deixa-me seguir as linhas que torneiam as formas desejadas, terras antes descobertas. Não por mim. Autoriza-me a perder-me nesse mundo carnívoro. Funde-te comigo. Compõe o teu corpo do meu, faz de mim humano.
Risca-me com giz no chão. Levanta-me e ri. Chora um pouco, fica sempre bem. Vitimiza-me. Preenche-me, urbaniza-me. Esculpe-me, leva-me, chama-me. Grita por mim. Quero ir. Quero sair daqui. Isola-me. Prende-me.
Foge de mim.
Foge comigo.
Mata-me.
Morre comigo.
Hoje fui à tua procura. Fiquei em casa. Hoje vi-te. Fechei os olhos. Fizeste um gesto. Não percebi. Estavas a olhar para mim e não me vi. Desapareci. Tornei-me árvore. Não dei frutos. Viste-me. Estou aqui.”
Percebes agora?
Não sei se percebi. Já não importa. Decidi morrer. O meu ego já está morto há muito. Não há nada para eu viver. Só restam páginas de má escrita onde não consigo mover-me de olhos vendados.
Quando decidi morrer, o cérebro, talvez numa tentativa frustrada de chamar o corpo à razão, começou a bombardear-me com imagens de memórias. Nostalgia. Não, não é a palavra adequada. Saudade? Não, não é isso. Desejo? Sei lá. Continuas a assombrar-me porque eu deixo.

O barco oscila na ondulação dos outros barcos, maiores. O som dos remos na água, o som da água sob os remos.

Na travessia, penso na solidão. Na solidão, tornei-me misantrópico. Preguiça, Crepúsculo, Aurora, todos os outros… nunca mais os quero ver. Abandonaram-me.
O som da água. Está a chover. A chuva vem do céu azul.

Falta pouco.

Falta tão pouco para chegar.
A margem.
Enjoado, enojado.
A água.
O meu corpo na água.
O barco sem passageiro.
O respirar, o bater do coração.
O meu corpo deitado num campo de malmequeres.
A subtracção do corpo deste espaço bidimensional.
O silêncio do vazio.
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