2010-11-30

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Pacta Sunt Servanda
(Partes de um todo, inexistente, um fôlego de existência que não me pertence.)

A solidão levada ao extremo fez com que dentro de mim nascessem novos “eus”, fragmentos de uma personalidade fragmentada. O conflito entre as várias identidades despoletou a 1ª Guerra do Ego, vencida por mim após inúmeras batalhas perdidas. A primeira medida tomada foi o exílio dessas personalidades. Agora, devido à solidão que volto a sentir, permito que voltem com a condição de não haver atentados ao poder soberano: Eu. Não consigo deixar de sentir inveja pelas outras individualidades porque elas sempre estiveram juntas e eu sempre estive sozinho. Elas sempre tiveram força e eu sempre fui fraco.
Com o intuito de chegarmos a um consenso, juntamo-nos numa sala no interior da minha mente. Um salão enorme, alvo, de calcário e mármore, com janelas de vidro caleidoscópico mirando o branco profundo era interrompido de quando a quando por grossas colunas em estilo clássico, ornamentadas com folhas de palma. O chão inteiramente de madeira, envernizado ao ponto de nos podermos ver reflectidos no seu brilho possuía ao centro uma mesa de carvalho, maravilhosamente esculpida com motivos saídos do meu subconsciente, semelhantes a figuras de diferentes mitologias. Nas cadeiras, igualmente gravadas, sentavam-se os meus homólogos. Ocasionalmente, a mesa aumentava de tamanho e do nada apareciam mais entidades, e outras vezes diminuía e desapareciam, chegando a ficar sozinho numa pequena secretária. Quando estavam todos à mesa o som era ensurdecedor. Disse:
“Sou eu quem fala neste momento.”
“Dirijo-me a vós!”
Todos se calaram. Ficamos todos calados durante três segundos. Após esta breve pausa, já tudo estava decidido e sem necessidade de trocar nenhuma palavra, comunicámos instantaneamente todos os nossos pensamentos. Apesar da discordância de alguns dos elementos deste consílio acerca da minha liderança, foi criado um tratado.
O Tratado de Super-Ego.

2010-11-24

11-QM88/21115122112.2238

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 Sento-me em frente a um monitor com uma página em branco. Lentamente, levanto os antebraços, abro as mãos e divido os dedos pelo teclado, sem fazer força, na pose de um pianista que se prepara para tocar.
Como em 4’33’’ apenas o silêncio se faz ouvir.
Não sei como hei-de começar.
Tenho tanto para escrever e não sei como contá-lo.
Não sei se me lembro como começou ou quando começou.
Como? Quando?
Uso um caderno que em delírio rabisquei com frases soltas. É uma ajuda preciosa para poder iniciar este exercício. Porque me parece um fardo? As minhas mãos não se querem mexer. É preciso começar por algum lado, é necessário encerrar este capítulo. Abro o caderno à minha frente. Transcrevo:
“Quando as linhas negras se entrecruzam, o símbolo rachado espera ansiosamente pelo boneco, ora de madeira, ora de ferro, que se solta uivando pela toca fora. Esse delírio comatoso que nos faz sentir a raiva do mundo novo, aquele mundo que não se consegue revelar. Quando o tempo tiver um sentido único, a correr como o rio que se afunila num descomplexado jazigo de vida, quero morrer, quero morrer três vezes sem olhar para trás. As luzes seguem o trilho traçado entre betão/metal e alcatrão. As caixas metálicas acumulam-se, param, continuam, voltam a parar. Edifícios aglomerados, uma ponte, um túnel e depois uma cidade. Estou num daqueles estados em que nem tenho sede nem fome. Sinto-me quente, talvez um pouco demais. Os solavancos e barulhos são exteriores a mim. Sinto-me curado de certo modo. Néones iluminam o escuro além das lâmpadas. Eu não quero nada. Nenhum dos meus vícios tem qualquer utilidade neste momento. Vou guardá-lo só como um momento de paz. Vou esperar que passe e dê lugar a qualquer outro sentimento.
Hoje vi a Aurora, o Crepúsculo não estava lá. Senti que ela desviou o olhar para não falar comigo. Foi só de passagem, contudo vi-a lá. Eu julgo que me viu mas preferiu ignorar-me. Acontece isto com a maior parte dos meus amigos. Talvez o meu egocentrismo os afaste. Talvez eu me afaste. Talvez se tenham fartado de mim. Talvez eu esteja saturado deles.
Lembrei-me do dia em que saí do meu corpo. Não me recordo como o consegui fazer. Não sei se quereria voltar a fazê-lo. Sinto que perdi parte de mim nesse instante. Sinto que deixei naquela estrada um pedaço de mim que não é interior nem exterior, nem sei se tinha forma. Sigo adiante…”
Foi na Primavera. Parece que passou um milénio desde aquele dia. A partir daí o meu mundo começou a desabar, primeiro nos espaços onde me encontrava e mais tarde dentro de mim. Os sintomas faziam-se sentir há muito tempo, vejo-o agora, mas fui demasiado estúpido e egocêntrico para reparar. A outra teoria é que eu próprio quis que o que estava para vir me afectasse, ocasionado pela solidão e influenciado pelo outro eu. Fui manipulado por mim mesmo deixando-me levar cegamente a um ponto onde não teria fuga possível e donde não poderia escapar. Deixei-me iludir. Este relato serve para que, na eventualidade de me perder novamente, possa voltar atrás, saber o que se passou e conseguir voltar a encontrar-me de novo.
“Foi como se estivessem dominós alinhados numa mesa comigo no centro. Alguém, outro eu, tocou no último dominó colocado na linha espiral e todos eles foram caindo. Eu estava a vê-los cair e quando chegou a minha vez caí também. Não foi uma imagem bonita de se ver, os dominós caídos, mortos do 0/0 ao 6/6.
O mundo alterou-se completamente. Neste mundo, as bestas alimentam-se dos mais fracos, apoderando-se da sua vida, forçando-o a viver num mundo, o seu mundo. E a besta alimenta-se da própria fraqueza alimentando assim a sua própria força. Falam daquilo que sabem, tentam impedir os outros de saber mais. Proíbem-nos de realizar os feitos que já fizeram. O inculto erudito, após a sua condição ter sido experimentada. A sua vida é nula. Incomoda-o as diferentes formas que os objectos podem ter. «A leitura é um acto de liberdade», diz ele.
«Todo o acto de liberdade é a construção do humano.»
«Não é lugar para isso aqui. Vá-se embora se fizer isso. Mas isso é o que constitui a sua liberdade.»  
E quando as bestas se juntam em grupo e partilham do mesmo prato?
Lutam pelo mesmo prato ou partilham a comida?
Depende de vários factores.
Devoram tudo e não sabem nada.
Podemos dizer que sabem tudo e devoram nada.
O ar aqui é pesado. O silêncio é profundo. Falta pouco, já saio daqui desta arena.”
Não me lembro quando escrevi isto e desconheço a razão porque o fiz. Manifestavam-se já de forma avançada todos os sinais da loucura que me tornavam unicamente num passageiro do meu corpo, uma embarcação sem capitão mas com inúmeros marinheiros sedentos do poder de chefia e de todas as regalias que isso implicaria. Eu sentia o meu receptáculo mas não o guiava, outros faziam-no sem tomarem atenção ao percurso nem a obstáculos. As sucessivas quezílias travadas pelos múltiplos tripulantes alteravam constantemente o trajecto e o objectivo do navio em ruínas fazendo com que sempre que houvesse uma mudança no poder, mudasse também o curso do corpo prostrado. Eu passivamente olhava para aquele espectáculo com desdém, nunca intervindo. Os apontamentos seguintes são meramente rabiscos febris, de tinta preta, que se deitam no solo que conhecem, o papel, para lá permanecerem acamados à espera que outra criatura decifre o seu significado. São gatafunhos daquilo que se constata ser um organismo desprovido de energia anímica, cujos gestos são selvagens não identificando ninguém. Desconheço se estes gestos são ainda meus mas transcrevo o que decifro como palavras que não parecem ser minhas.
“O sol bate na cabeça. Derreto-me como um ovo estrelado. Não consigo mexer-me. «Mexe-te». Vê-se o sol lá em cima, que me diz: «Não devias ter ficado tanto tempo a torrar. Derreto-te.» A pressão aumenta. A cabeça é um balão que se enche, prestes a rebentar, no momento em que a Hipocondria toma conta de mim. Sinto dificuldade em respirar e tenho cancro. As metástases multiplicam-se. Estou dormente.
Contam-se nove nuvens no céu. São gigantes feitos de algodão. Querem controlar-se mas deformam-se e formam-se novamente. As suas faces mudam. Há quem veja várias, há quem não veja nenhuma. São agora gigantes desfigurados. Não me dói a cabeça, só parece que está a querer sair dela própria, primeiro pelos orifícios, orelhas, nariz e boca e depois pelos buracos do crânio que estão tapados por pele e carne. Mais dormência… mais pressão… A cabeça parece explodir. Toco o nariz e os ouvidos à espera que saia deles algum líquido ou massa. Não consigo pensar.
(…)
Um homem levantou-se e caiu no chão, morto. Levantou-se de novo sem saber o que se tinha passado. Tudo era vermelho à sua volta. O homem tocou o vermelho e o vermelho fugiu. Aproxima-se lentamente o objectivo. Enquanto me aproximo parece que ele se afasta. Mais devagar que eu, certamente, porque continuo a sentir-me aproximar. Quando chegar lá vou inspirar e experienciar. Estou a guardar a respiração para lá. O que irei encontrar lá? O que verei lá? Ninguém sabe?
«Não, eu não!»
(silêncio)
«Eu também não!»
«De qualquer forma não importa.»
«Não importa porquê?»
«Não vês? Não me digas que não consegues ver.»
«Eu vejo.»
«Eu também…»
«Eu não consigo ver. O que é?»
«Olha para esta árvore. Eis que brotam as primeiras folhas da cabeça caduca. Começam pelo simples botão mas rapidamente se tornarão em verdadeiras folhas.»
(…)
A minha boca sabe a formigas. Engoli-as quando comi aquele pacote de açúcar. Não as vi mas acredito que elas já lá estavam antes de as ter engolido. São tão pequenas mas tão fortes. Gostava de ter a força das formigas. Aposto que ainda se estão a debater no meu estômago, grão de açúcar em grão de açúcar. Provavelmente vou abrir a boca e vão sair de lá uma ou mais formigas. Então, nuvens sobrevoam-me e deixam cair gotas de líquido verde sobre mim. Bílis dos céus. Em posição fetal, lembro-me que há vários aspectos da minha personalidade que mudaram nos últimos anos.
(…)
Deste texto não consigo descodificar mais uma palavra sequer. O texto torna-se apenas uma linha curva intermitente. Penso que todos os vocábulos indecifráveis são partes que nunca deveriam ter sido escritas. Passou mais de um semestre até que tinta voltasse a ocupar folhas brancas com melhor caligrafia. Todavia, já não era eu. Era um outro eu que se apossou de mim. Controlou as acções de um bonifrate com o nome de Ego Jeiyo. Ou então era Eu incontrolavelmente disperso no meu eu revelando outro eu alienado na minha memória, um eu que esqueci mesmo antes de começar a escrever, sendo que esse eu é o mesmo eu que se encontra neste momento a exprimir impressões, possuído pelo outro eu, sem nunca ser eu próprio. O eu é «Eu» sem ser Eu. Inimaginavelmente não me pergunto se o eu sou Eu. Deixo-me ser eu apesar de não o ser. É-me favorável ser eu antes de ser ele. Adiante:
“Jazem debaixo de sete palmos e meio de terra as horas desperdiçadas em horas desperdiçadas. Tempo perdido, é o que eu digo, tempo que passei assim… Apetecia-me roubar tempo para mim. Tempo extra para desperdiçar. Mais horas desperdiçadas…
«Então para que quero mais tempo se o vou desperdiçar?»
Mudando de assunto. Foi numa destas horas perdidas, ou para situar melhor no tempo, num minuto perdido, que encontrei a Aurora de novo. Memórias de outras auroras. Não estava com o Crepúsculo. Apesar de não me dizerem nada sei que eles se afastaram. A nossa relação degradou-se. Penso que a relação entre eles também se degradou. Quando encontrei a Aurora, cumprimentámo-nos e ficámos assim uns minutos, mais minutos desperdiçados. Ficámos como velhos amigos, que já não o são, amigos antigos que já não se vêm muito e quando se encontram, ficam-se por um «Olá.». Começámos a falar do tempo, naturalmente. Perdemos horas a falar de tempos passados. Perdemo-nos na memória desses tempos. Horas perdidas…
Volto para casa. Ao passar em escombros de várias casas arruinadas fico ansioso rezando que a minha não tenha sofrido o mesmo destino. Chego a mais ruínas. Entro na casa acabada de destruir com intenção de começar as obras de reconstrução. Uma pedra, duas pedras, cimento, mais uma pedra. Impossível levantar a casa de novo. Seria necessário uma equipa de construção muito maior. Só me tenho a mim e sou pouco. “
Comecei a sentar-me em bancos de jardim e ver pessoas a passar. Musas. Monstros. Ninguém. Deixei o tempo passar por mim e durante meses estive assim, sozinho, sem estar sozinho, sem esperar nada de mim. Deixei o tempo gastar-me juntamente com o banco, minha casa, até nos tornarmos um objecto só, inseparável.
Amnésia.
Falta-me o vocabulário. Não sei mais escrever, as palavras repetem-se frase após frase. Escrevo mil vezes a mesma coisa. Os meses seguintes são um borrão de tinta preta.
Um ataque de loucura foi o que me levou daqui deste espaço. Um ataque. Um feroz ataque de raiva, paranóia, medo… Estou melhor, já estou sozinho.
Esqueço.
Amnésia.