2008-12-16

Mercurii, Martis, Solis, Martis dies

Mercurii dies:
Havia um dia de que costumava recordar-me. Esse dia era especial. Eu era criança. Apontei o dia no calendário de parede com um círculo vermelho para não me esquecer. Nesse ano era uma quarta-feira, como hoje. Eu era uma criança infeliz sentada numa cadeira de cozinha virada para a porta. Esperava que ela se abrisse. Em vez disso a porta na janela abriu-se e entrou um pequeno ser, um homem minúsculo, que parou a olhar para os meus pés descalços e sujos. Pedi-lhe que fechasse a porta da janela. Entrava corrente de ar e sentia o vento a subir a coluna vertebral.
Arrepiei-me. Um calafrio?
O pequeno homem fechou a janela. Agradeci e ele dirigiu-se a mim. Peguei nele, deixei-o equilibrar-se na palma da minha mão direita e perguntei-lhe o que estava ele ali a fazer. Respondeu que eu estava à espera dele. Como é que ele sabia? Nunca saberei.
Aquele era o meu dia especial. Ele trouxe-me o que lhe pedi. Agora esse dia deixou de ser especial.
Acho que já não sabem onde vivo.

Martis dies:
Nada para mim ou para ninguém. Não o mereço, ninguém o merece. Está um frio estranho que anestesia o cérebro. Não, não foi o fumo das castanhas assadas, foi o frio que me largou neste café ermo com as mãos geladas e sem saber o que estou aqui a fazer. As semelhanças com uma criatura morta-viva são incríveis. É assim que o frio me paralisa a mente.
Disse para mim próprio que não estou ali mas estou sem querer estar. Pisco os olhos, até os chego mesmo a fechar completamente mas nada desaparece.

Solis dies:
O dia prolongou-se por mais de 48 horas. Como é possível? Não sei, diz-me tu!
Penso que o sol se fartou de adormecer ou então a lua esqueceu-se de aparecer. “Tic tac”, diz o relógio para o homem em pé a olhar para o céu. Nunca mais é noite, responde a senhora de azul às riscas.
Sou um labirinto. Sou um tecido feito de plástico com padrões irregulares. Se não soubesse não diria mas parece mesmo irregular. À primeira vista não eram mas aqui perto sei que são.

Martis dies:
Sou uma pessoa solitária. O sonho é a melhor parte do meu dia porque vivo aventuras inimagináveis para o ser humano. Conheço o mundo, voo, caio num precipício sem morrer. O sonho falha-me, é injusto para comigo. Faz-me esquecê-lo, abandona-me num mar de lençóis pronto a enfrentar a triste realidade. Eu aproveito a doce inércia do acordar enquanto o sono me atrai e o frio do despertar me retrai. É nesses minutos que a realidade do sonho se mistura com a irrealidade do estar acordado, é nesses minutos que lembro os sonhos. O sonho funciona como uma nuvem branca que se dispersa nesses ínfimos minutos; deixa apenas uns vapores que também se desfazem ao longo do dia. Talvez o sonho tenha sido feito para ser esquecido.
Para que não me lembre do que eu já fui um dia.
Talvez eu não pertença ao mundo onírico…

2008-11-18

Martis dies

Martis dies:

A minha cabeça está na Lua mas estou em Marte no dia de Marte (que não é esse dia de Marte).

Folhas amarelas, folhas vermelhas, folhas castanhas, folhas verdes, folhas em branco.

Porque não há nada a dizer, nada a fazer, no dia em que estou em Marte com a cabeça na Lua e o sol a bater-me nos olhos…

(Não me importo, hoje nem é esse dia.)

2008-11-05

Mercurii dies

Mercurii dies:
A vida é um quebra-cabeças. Pode entender-se como um daqueles puzzles que têm um número infinito de peças ou como um cubo de Rubik.
Se olharmos para ela como um puzzle temos que ter noção que faltam sempre peças para o todo e as muitas partes que ainda restam estão em montes à espera de ser colocadas no sítio certo. O puzzle vai sendo completado mesmo sabendo que nunca vai ser acabado. As peças chave vão faltar sempre, as peças já colocadas estão ocasionalmente no local errado. Por vezes mudam-se partes certas para sítios errados, partes erradas para outros lugares errados. O ponto comum é que existe sempre um padrão.
Se virmos a vida como um cubo mágico temos necessariamente que conotar que ao mudar uma peça de lugar a sua oposta vai também mudar. Isto quer dizer que nunca podemos simplesmente esperar que quando faltar um cubo para acabar, este possa ser finalizado. Temos que voltar a baralhar os pequenos cubos coloridos para que possamos voltar a montar. Nunca, nunca podemos alterar um fragmento sem que outro seja afectado pelo movimento. Apenas os quadrados centrais estão imóveis tal como os traços básicos da nossa personalidade.
É assim que me sinto, um ser incompleto, baralhado, inerte. Espero ser concluído às mãos de alguém sem saber se alguém um dia vai conseguir ou tentar. Anseio que as partes que me constituem sejam postas no lado certo mas elas estão ou perdidas ou no espaço errado. O maior problema é que cada peça tem apenas um lugar certo em todo o quebra-cabeças e as minhas peças estão todas trocadas.
Durmo, sonho, acordo, sonho, vivo, morro, vivo, morro. Sou o Ego.

Saturni, Solis, Lunae dies

Saturni dies:
Ressuscitado. Qual a minha primeira acção? Fumar um cigarro.
Como qualquer coisa doce, bebo água fresca e tomo um banho. O meu corpo tresanda devido a estar constantemente a deixar-me morrer. Chama-se putrefacção. Passeio pelas ruas paralelas em marcha lenta. Olho para o chão, para as casas, para as pessoas. Sinto que as estou a deixar desconfortáveis. Uma delas até me faz um gesto obsceno, outra tenta agredir-me. Está frio.
As pessoas não gostam de mim. Não sei se alguma vez gostaram. Desconfio que nunca gostarão.
Oh… voltei a deprimir. Vou suicidar-me um bocado. “Até logo”, digo-me antes de sufocar.
Agora, morto, posso dedicar-me à meditação uma vez que não faço nada da vida. Mais vale estar morto, não?

Solis dies:
Pela primeira vez desde que morri estou arrependido de querer esquecer.
Pela primeira vez apercebo-me das consequências nefastas que a morte me trouxe à memória. As palavras faltam-me para conseguir descrever o meu problema e isso é também correspondente à minha crescente perda de memória. Não sei bem o que fazer, não sei bem quais os termos dos meus desejos. Será que vou esquecer quem sou? Desconheço totalmente o que advém das minhas lacunas temporais. Perco-me no sentido das minhas frases. Não desvendo o seu significado.
Quem sou eu afinal? Por que motivo não consigo realizar os meus desejos da forma que eu quero que eles se realizem?
A minha mente é um turbilhão.

Lunae dies:
Estou com sérios problemas. A Amnésia, senhora velha e caquéctica está continuamente a atrapalhar-me os planos, contudo consigo lidar com ela. Já o Conhecimento, homem sóbrio, honesto, nobre que conheci há uns anos atrás está desaparecido e não consigo encontrá-lo. Nestas circunstâncias não consigo procurá-lo, não tenho posses para contratar detectives nem posso mover-me para ir avisar a polícia. Estou preocupado. Procurei-o tanto quanto pude. Sem ele começo a sentir-me um incompetente, um ser ignóbil. É estranho como preciso de tanta gente e ninguém necessita de mim. As únicas pessoas que querem estar comigo só me atrapalham (ex.: Dona Preguiça). E quanto me perturbam.
Passo a mão na testa húmida. Estou cansado de pensar. Estou saturado de aparecimentos e desaparecimentos. Queria voltar a ser o velho Ego Jeiyo. A minha mãe não me criou para isto, pelo menos não era o seu plano. Acho que ela nunca sequer imaginou que eu me iria tornar no ser disforme em que me tornei, nunca neste ser imprestável.
É Outono e as folhas estão a cair já há uns meses. Eu sou o fruto apodrecido que cai das árvores antes das folhas.
Nada mais pode ser escrito hoje. Vou morrer.

2008-10-29

Mercurii dies

Mercurii dies:

O Passado persegue-me; tenho que fugir dele a toda a hora: tarefa difícil, já que estou morto. Mais difícil é aturá-lo com os seus “bla blas”, garanto que com o seu paleio consegue acordar os mortos…. É chato, chato, chato… Veio ter comigo só para me contar coisas que tento esquecer para tentar mais tarde, se possível brevemente, viver em paz comigo. E o Passado é uma pessoa que não se conforma com nada. Tem que controlar, estar por cima da situação. Eu sei que carrega nele as frustrações de toda a gente mas também deve haver temas mais interessantes para falar. Podia falar de coisas felizes por exemplo. Isso para mim seria óptimo. Encontro-me aqui imóvel, logo seria bom ter alguém que falasse comigo mas pronunciar essas coisas…. Essas coisas não devem ser ditas nem pensadas, por isso é que são coisas. Indefinidas… Cala-te Passado… fui obrigado a dizer-lhe das boas. Com ele é sempre a mesma história. Mandei-o embora para fazer as coisas dele, se bem que ele não faça coisas. Vou viver por um bocado e já volto. Começo a gostar destes escapes.

2008-10-28

Lunae dies/ Martis dies

Lunae dies/ Martis dies:
Estar morto é ao mesmo tempo libertador e castrante. Libertador porque estando morto deixo de ter deveres e castrador porque morto não posso mover-me, ter ideias, relacionar-me com pessoas (a não ser que estas estejam também mortas, claro). Não tenciono estar morto muito mais tempo, tornou-se aborrecido para mim. No início até foi interessante mas agora começa a esgotar-me a paciência. Os insectos são as criaturas que mais me atormentam. Detesto quando eles andam dentro de mim a fazer-me comichão e cócegas. Odeio o prurido sobretudo porque as cócegas até dão para rir. Mesmo que às vezes os insectos não estejam em mim, se penso que estão, começo logo a coçar-me todo e a sacudi-los. Torna-se irritante e eu torno-me irritadiço.
É óbvio que nem sempre estou defunto senão não conseguiria escrever. O passado ensinou-me muito. As minhas descobertas fizeram-me praticamente invencível embora todos os meus estados tenham também consequências. Por exemplo, quando descobri que sou apenas um personagem manipulado isso devastou os meus sentimentos fazendo com que diminuísse de tamanho. Agora sei que fui eu que provoquei esse estado e se quisesse poderia ter-me tornado um gigante. Preferi estar morto em vez disso (não chateio ninguém, ninguém me chateia). Estou sozinho.

2008-10-27

Solis dies

Solis dies:

O dia do sol em que faz sol.

Está frio na cama mas estou levantado por isso não sinto o gelo do cubo no copo. O gato branco mia, o pássaro canta, os cavalos relincham, os pássaros chilreiam. O meu sangue é frio. Estou ao sol para me aquecer. Já não sou pequeno, o meu tamanho voltou ao normal. Sei que estive pequeno porque não resisti a espreitar o passado… depois cresci, penso que foi durante o sono, julgo ser consequência do sonho. Deve ser da idade.

É nestes dias que começo a pensar na morte. Na minha morte… Poso dizer que já morri e foi bom.

2008-10-23

Dia 244 a 388

Dia 244 a 387 (Martiis dies):
Manchas! Pequenos borrões de tinta entornada formam padrões daquilo a que eu antes chamei memória. Um dia após o outro, as percepções do mundo que estava lá fora, mesmo cá dentro, confundem-se com a atmosfera em que se eleva o ar, carrega o som, traz a luz. O que não existe. Eu, amaldiçoado ser, desejo de certo modo que estes dias não tivessem sequer existido. Não estou a dizer que eles não existiram, nem quero afirmar que existe uma lacuna no tempo, impossível de preencher, independentemente da razão, devido a um capricho meu. O que quero dizer é que esta condição de liliputiano me afectou, dando prioridade às sensações, onde causou grande impacto. É apenas isto que quero lembrar deste espaço de tempo. A isso vou referir-me nas próximas linhas da minha inconstante crónica. O papel de nada serviu a não ser para garatujar pedaços de pensamentos e nada de uma acção concreta. Sem números a guiar-me, sem razão. E eu sei que sou o Ego, mas fui-me transformando num ser abstracto, disforme. A reclusão neste lugar deu os seus frutos que amadureceram e apodreceram. Tenho noção da minha realidade mas conheço os seus limites.
O meu corpo em formaldeído…
Os parágrafos incompletos…
A morte…
A conclusão:
O Crepúsculo e a Aurora eram meus amigos. Já não sei quem abandonou quem mas a nossa relação perdeu-se. Tudo começou quando eu era ainda um jovem petiz com vontade de explorar o mundo. Foi nesse tempo que conheci o Crepúsculo. Devo confessar que me apaixonei platonicamente pelas suas cores e pelo mistério que o envolvia. Com ele, e depois dele tudo seria possível no mundo das luzes artificiais. A Aurora conheci um pouco mais tarde, quando o Crepúsculo não me trazia nada de novo. Por ela apaixonei-me perdidamente… Vivemos infinitas horas juntos e sempre esperei por ela. Fui eu que os apresentei. Fico feliz por isso. Juntei-os… Eles agradeceram-me… Vivemos muitas noites, os três, inseparáveis. Um dia comecei a cansar-me… Foi o início do fim. Não é propriamente do fim que estou à espera. Perdi-os, os meus melhores amigos e confidentes.
Às vezes ainda sonho com eles, apetece-me correr para eles, mas tenho medo de ir a correr ao seu encontro. Sinto especial falta da Aurora e vejo-a muito menos que ao Crepúsculo. Eles eram os meus amigos. Adoro a Aurora… Sinto tanta falta dela, das suas conversas.
Às vezes ainda os encontro na noite. Eles evitam-me. Quando passo por eles mostram-me tanta indiferença como eu mostro às suas faces. Penso que desde que os deixei separaram-se. Não sei se continuam a encontrar-se. Talvez, algures, através do olhar de um novo Ego eles se unam mais, uma vez, só mais uma vez, no seu ciclo. Eu estou morto…

Mercurii dies:
Torpe corpo este que aqui jaz, penso eu ao acordar. Poderia chamar-lhe dia 388 mas este dia não tem número; aliás tem o número 0. Zero porque aqui tudo recomeça.
Eu sou o Ego.
Achei-me morto, infelizmente apenas estava latente nesta carcaça. A carcaça é a minha. O meu corpo neste leito, dormente. Eu acordo. Nunca adormeci. Parece que simplesmente deixei de existir. Neste espaço existo mas não existo. Pessoalmente não importa. Estou sentado num café. Antes disso um recomeço, um sentido. Era o que tinha antes de me dedicar a detective da minha personagem e as conclusões foram devastadoras para este ser inexistente: eu, o Ego.
Os factos foram estes:
Nasci dum modo em muito semelhante a este que me traz de volta ao mundo. Este mundo é o mesmo que o teu mundo. Pensei mudar de nome. Pensei lavar a cara. Esta estava imunda, cadavérica, cheia de chagas. Eu esqueci-me daquilo que sou e o que represento. Vizinhos. Faces limpas. A solidão de existir inexistente. Clamam as vozes um novo início. Eu recuso-o. As vozes continuam a gritar. O instrumento dá o ritmo do texto. Eu ouço a campainha. Parece natal mas não é. Foi aqui que me perdi.
Só agora é que me encontrei.
Tropecei nas malhas do destino onde fiquei preso. Abri caminho à dentada. Com os dentes fincados cada corda se rompia mais um pouco assim como a minha memória. A minha memória tornou-se apenas naquilo que já está escrito. Preferi esquecer o passado. Não o quero reler, relembrar.
Sou novo, igual, diferente, velho. Quantos dias (no sentido de dia enquanto espaço de 24h) passaram? 141 dias. Cento e quarenta e um dias comatosos em que hibernei. Descobri que o desejo de José Gomes Ferreira pode ser realizado. Suicidei-me vários meses. Não 6… nem tanto…

2008-07-07

N.B.5: O desenrolar dos tempos impede-me de vir aqui apontar aquilo que se tem passado. E o passado é enorme e indescritível por falta de memória. Em poucos dias os dias estarão acumulados em letras… sem sentido…. Sem rumo… Despeço-me de mim mesmo sabendo que em breve voltarei… até já… digo-me…
Estou aqui mesmo que não esteja! Não desapareci (ainda)!

2008-06-01

Dia 243

Dia 243:
Não consigo deixar de notar que nestes tempos miseráveis que tenho passado o meu medo cresceu imenso. Evoluiu tanto que temo que este pavor tenha já tomado uma forma bizarra; e quando vejo este ser curvado sobre si mesmo com costas espinhosas, sorriso ténue acho que ele está mesmo lá. Dou por mim a olhar para trás a cada minuto que passa quando não estou a olhar para o chão tentando desvendar a sua sombra tenebrosa. Ao fundo do corredor ouvem-se barulhos com voz de pessoas a cacarejar. (Sim, as pessoas cacarejam tão bem como qualquer galinha.) Tenho ainda mais medo. Tive a sensação eu alguém entrou aqui mas escondi-me rapidamente e não cheguei a ter uma boa perspectiva. Tenho passado muito tempo omitindo-me de mim mesmo. Já não me vejo reflectido, privado que estou do universo em que vivi outrora. Não sou mais um ser sociável. Não sou mais parte da sociedade. Pergunto-me de quando a quando, enquanto imagino o meu reflexo na sombra. Afinal sou mesmo eu que estou ali. Sou mesmo. Não sei se sou. Há rangeres de madeira fincada em alumínio que me fazem suster a respiração. Não sei se o predador tem olhos ou ouvidos. Pode ter sensor térmico e nada disto me valia. Se pudesse apagava a luz mas não chego ao interruptor. As luzes estão desligadas. Ouve-se uma música ao fim de três dias. Por que razão não a ouviu nos dois dias anteriores se viu que estava lá. Viu-a com os dedos de porcelana da loiça… Tenho que me esconder novamente.
Vêm aí passos… Só passos… Ninguém vem com os passos…

Dia 242

Dia 242:
Este dia não teve qualquer importância. Pelo contrário, foi de tal modo insignificante que consultei três vezes a minha caixa (vazia) de correio electrónico, andei em círculos três horas e dormi o resto do tempo. Podia ser eliminado do calendário. Estou a considerar construir de qualquer modo uma ponte para a janela. É preciso ver o mundo. Há aqui algum material que posso utilizar mas não seria uma grande obra de engenharia pelo simples facto de que não tenho como prender as pontas. Seria como atravessar uma longa corda bamba. Não me esqueço, já que caminho nela e tenho prática…

2008-05-30

Dia 241

Dia 241:
(Só hoje consegui vir aqui e escrever de memória o que se passou nos dias anteriores. Estes têm sido dificultados por razões que ainda desconheço e por momentos prefiro não saber. Entretanto vou continuar a navegar neste mundo que é o único que tenho disponível: a internet.)
Sonho com o dia em que possa voltar a ser eu, o Ego Jeiyo dos velhos tempos, do velho tamanho. Preciso sair de casa. Sinto-me abandonado. Queria que alguém procurasse por mim com uma lupa. Acho que com algo que me ampliasse poderiam ver que eu estava aqui e que não desapareci totalmente.
Quero viajar, deambular por ruas de calçada molhada, voar rasgando nuvens de algodão doce com forma de coelho ou elefante…
Tenho saudades…
Não posso sair desta clausura…
Sou só uma personagem…

Dias 229/230/231/232/233/234/235/236/237/238/239/240

Dia 229:
Um banho na água que posso beber está decididamente fora de questão. Contudo tenho que arranjar uma solução para a escassez de recursos que começa a surgir como um pequeno senão e porventura irá tornar-se a causa da minha morte.
Hibernação foi a primeira solução que ponderei, sendo a mais plausível, contando com o facto de poder poupar comida e bebida, para não falar que enquanto estivesse nesse estado poderia não pensar nestes problemas. A verdade é que durante todos os dias que passasse nesse estado, pesadelos irromperiam através dos sonhos e eles não cessariam. Acredito que para resolver problemas é preciso enfrentá-los. (Todavia esta bela teoria não se aplica a mim, preferindo eu evitá-los, esquecê-los…)
Hibernar não seria a solução. Apenas estaria a adiar o inevitável. Os animais que se colocam num estado dormente em alturas que rareiam alimentos sabem que na época em que despertam há fartura. Eu, por outro lado, sei que terei os mesmos alimentos que agora, ou ainda menos, podendo até ser roubado, e no momento em que acordasse estaria já morto. De qualquer forma não tenho bens alimentares suficientes para me engordar ao ponto de passar tal privação. Logo, recorrer à letargia é uma atitude insensata que não devo tomar.
Outro método que poderia falhar, por motivos muito semelhantes a estes, é o racionamento de recursos.
Tenho que encontrar uma medida que funcione…
E não posso deixar-me arrastar nesta condição.


Dia 230:
Após ponderação nocturna em que equacionei múltiplos factores resumi-me a dois desfechos possíveis.
A primeira destas resoluções é a mais fácil de concretizar e resolveria todos os meus problemas. Todos… nunca mais necessitaria preocupar-me com a palavra problema e as suas causas ou com a palavra solução e as suas incertezas. É ao suicídio que me refiro. Bastava lançar-me da secretária e seria o fim, deste diário, da minha dualidade, de tudo, de nada… A queda seria alta mediante o meu tamanho insignificante. Seria fatal… É nesta solução que me debruço neste momento e (in)felizmente não encontro muitos pontos negativos.
A outra das duas soluções possíveis a que cheguei é a excursão pelo quarto à procura de outros restos que tenha deixado em mais cantos obsoletos. A viagem seria longa e penosa. A probabilidade de encontrar alimento seria enorme uma vez que não costumava limpar frequentemente os meus aposentos, e tinha o hábito de comer aqui. Cria-se o problema da bebida. Como poderei eu carregar líquidos na minha demanda? Já houve uma altura em que não precisei beber e percorri longas distâncias sem sequer me lembrar.
É essa a chave, esquecer-me…
Se me esquecer não precisarei iniciar uma busca, mas enquanto me lembrar que me tenho de esquecer não conseguirei esquecer…


Dia 231:
Tentei não me lembrar mas não consegui.
É extremamente difícil esquecer que não me quero lembrar que tenho que esquecer o que estou continuamente a lembrar.
Que dor de cabeça…
Estou farto, vou optar pela solução mais fácil. Dirijo-me para a berma da secretária e olho para baixo. A altura é vertiginosa; dou o passo em direcção a esse abismo. Não consigo… Tento lançar-me, tento empurrar-me, tento mesmo somente deixar-me cair e não consigo atingir o fundo. É como se algo, uma parede, me impedisse de avançar mais… É como se alguém superior a mim me segurasse no ponto de queda…
Que merda…
Não tenho livre-arbítrio…


Dia 232:
Foi decidido. Não posso ficar cá em cima à espera que alguém me liberte; sinto-me preso; obrigado a fazer o que não quero. Sinto-me a enfrentar um castigo que não mereço, desde que cheguei a conclusões. Ah, se pelo menos a minha curiosidade não tivesse levado a melhor!!!
Existe algo ou alguém que me guia, que decide o que decido… triste fado…


Dia 233:
Resta-me partir… Abandonar este porto seguro sem saber se existe bilhete de volta.


Dia 234:



Dia 235:



Dia 236:



Dia 237:
Cheguei neste dia ao piso. O pó acumulou-se desde que diminui e sinto que este território me foi retirado. Um arrepio é o sinal… já não me sinto seguro. A locomoção é dificultada pelo pó que deixa o ar pesado, quase irrespirável.
Por outro lado encontro comida suficiente para armazenar. Escondo-a num ponto seguro e faço investidas aos arredores retornando sempre a este ponto. A comida está bolorenta ou dura, mas não posso queixar-me, é melhor que não haver nenhuma migalha. Farei o mesmo nos dias seguintes…


Dia 238:



Dia 239:
Estou exausto…
Consegui arranjar mantimentos para vários meses se for necessário. O mais complicado será levar isto lá para cima. Olho, e o topo da mesa parece ser tão distante. Mas tenho de fazer este último esforço, por mim…
Sono, sono, sono, sono, sono, sonho!
Tenho de me manter acordado!
A viagem começou hoje e já me sinto tão cansado…


Dia 240:
Não acredito em milagres mas o que me aconteceu é no mínimo bizarro. Ao acordar qual foi a minha surpresa ao descobrir que me encontrava no cimo da minha secretária, dentro do meu esconderijo… Primeiro fiquei feliz por ter vindo cá parar de novo, visto que me sinto mais seguro. Ao fazer a ronda para ver se estava tudo bem vi que não tinha mais água nem alimentos e olhei lá para baixo e os outros alimentos estão lá onde os guardei. O que me trouxe aqui pode ter-me ajudado. Porquê então desprover-me de bens necessários à minha sobrevivência. Ter-me-á colocado aqui para morrer? E onde está a minha água? Quem me der ter aqui um cigarro… Estou com ataques de ansiedade…
Dia 240.1:
Mais bizarro é não ter fome ou sede. Sinto-me bem… Já não percebo nada. Se não me esqueci que necessitava de comer e de beber, por que já não sinto necessidade?
Não vou questionar… sempre que questionei aconteceu-me algo pior ainda…
Vou deixar-me seguir o meu rumo sem mais atrasos já que não tenho necessidades. Estou desprovido, vazio…

2008-05-16

Dia 228

Dia 228:
Tresando… Primeiro considerei ser o cheiro dos restos mortais de algum bicho mas este odor provém de mim. Não me lavo desde que fui afectado por aquela tragédia que não ouso pronunciar. Ai, se eu não fosse tão curioso!
Que raiva. Dualidade, tomar banho ou ver as minhas reservas de água esgotarem. Já não são muitas porque estou sempre sedento de mais líquidos…

Dias 225/226/227

Dia 225:
O episódio de ontem deixou-me, além de transtornado, paranóico. E este sentimento delirante obrigou-me a fugir sempre que ouvi um som. Até a voz do meu pensamento me fez correr para o mesmo esconderijo. Isto levou a que não fizesse mais nada do que esconder-me e voltar a caminhar para o computador. Estou estafado…
Por outro lado devo constatar que vi a lua, entre as nuvens. Quis aproximar-me da janela para ter uma melhor vista mas isso demoraria demasiado tempo, então permaneci por aqui, sempre atento ao redor para me evadir velozmente.
Para o refúgio…


Dia 226:
E continua esta impressão que me faz arrancar os cabelos, que me traz calafrios, que me faz ficar sem dormir dias, que me limita, que me absorve os pensamentos…
E se está tudo na minha cabeça?
E se nunca a aranha matou a mosca?
E se quer a mosca quer a aranha nunca tenham existido?
A única convicção que tenho: estou reduzido a uma ínfima parte da minha dimensão…


Dia 227:
Dormir no meu abrigo é desconfortável. A corrente de ar é menor que em cima do tapete do rato mas adormecer lá equivalia àquelas noites de verão em que adormecia na relva orvalhada. Sentia-me livre. Aqui mal consigo respirar…
Temo que a aranha volte para me devorar, para não referir os pesadelos em que ela me devora enquanto durmo. É estranho dormir a sonhar que sonho comigo a dormitar e ser morto. Acordo angustiado.
Claustrofóbico. Passaram inúmeros dias em que não saí da secretária e este pequeno mundo está a enlouquecer-me. A minha escolha de vir viver para a secretária não foi em vão. Pela internet consigo manter-me actualizado e sei tudo o que se passa nesse mundo virtual. No pior caso estou a ser manipulado e nada do que leio e vejo está a acontecer. Às vezes gostava que isso fosse verdade. Parece que tudo que acontece está mal devido a ideologias. Queria abdicar de todas, as minhas preferencialmente. Quero ver com os meus olhos e abandonar o monitor.
Quero crescer novamente…
Estou preso…

2008-05-13

Dia 224

Dia 224:
Dia perigoso este…
Estava eu a tentar comunicar com uma varejeira que, por sinal, era até bem simpática quando a minha paz foi destruída. Até aqui a secretária aparentava ser um lugar calmo mas o desenvolvimento desta história mostrou-me o oposto:
Enquanto ouvia o zumbido daquela mosca, tentava interpretá-lo, e talvez conseguisse aprender a sua língua, tornando-nos confidentes. Numa situação normal não escolheria um insecto que deposita ovos em corpos mortos e que defeca em tudo quanto é branco… A solidão que tenho enfrentado cá em cima é que me fez repensar as minhas amizades.
Num momento em que tentava zumbir para ela, esforçando-me para expressar vagarosamente nesse zumbido as palavras “ não estou a perceber nada, zumbe mais devagar”, cujo som se assemelhava a zzzezzzzezzzzzzezzzzezzezezzze, apareceu de surpresa uma aranha e capturou a minha recente amiga. É verdade que não nos entendíamos mas a nossa relação estava apenas no início, e pelo desenrolar das coisas teríamos muito tempo para nos conhecermos melhor. Abalado pelo choque, comecei a correr em direcção a um qualquer abrigo; fui parar ao local onde estavam os restos de comida. Foi um gesto instintivo que provavelmente me salvou a vida, porque ainda não tinha comido nada (em muito devido ao facto de não querer partilhar com a mosca) e não sabia quanto tempo mais ia permanecer lá. Arrastei uma folha velha, encorrilhada, de um rascunho; deixei apenas um buraco para poder espreitar. Pela primeira vez desde que estou cá em cima desejei ter a minha força normal para esmagar a aranha. Tive medo. Ela matou a minha nova amiga!
Dia 224.1:
Passaram horas… penso ser já noite.
Afasto o papel devagar, conoto que já não estavam lá, nem a aranha nem a mosca. Verifico bem primeiro, olho por/para todo o lado e nem sinal de ambas.
Resta-me por mãos à obra…
Ainda tenho muito que fazer…

2008-05-11

Dia 223

Dia 223:
As pessoas vêm e vão embora, quase tão rápidos quanto chegaram. Chamam por mim. O interesse delas não há-de ser muito porque de outro modo procurar-me-iam por aí. Até a Dona Preguiça me visitou, reconheci-a pela sua voz, e rapidamente voltou a sair. Não é que a sua companhia me faça falta. Ela é demasiado incapacitante.
Mas houve a presença de alguém que me enraiveceu. Não consegui distinguir a voz entre as outras vozes porque a porta é ainda a uma certa distância da secretária de onde me encontro. A voz, após chamar por mim intermitentemente, começou a balbuciar palavras ofensivas entre as quais proferiu o seguinte:
-Ah, não deve estar em casa… Também não importa, da maneira que o Ego é, deve ter ido para algum lado sem sequer avisar…
-Ele é mesmo assim! - Respondeu outra voz.
-Pois é… Ele não se importa com ninguém a não ser com ele próprio, egocêntrico como é. Podes crer que quando precisar de nós vem a correr com o rabinho entre as pernas e aí vai comer-nos na palma da mão.
Ai, se eu tivesse o meu volume normal; certamente irromperia pela porta e descobriria quem estava ali a conspirar contra mim. Que pensam eles conhecer de mim para me julgarem. Não farão eles a mesma coisa quando precisam de mim?
É demasiado fácil atribuir aos outros os defeitos da generalidade. Não consegui decifrar a voz… ainda pus em causa muitas pessoas mas não consegui ter convicções… enfim… tenho longas distâncias a caminhar todos os dias e muito para saltitar para me preocupar com hipocrisias… não me vão depois dizer isso na cara…

Dias 204 a 222

Dias 204 a 222:
É a tremendo custo que volto a escrever. Antes de mais devo admitir que pensei inúmeras vezes em abandonar este diário e com ele a minha vida. Nem sequer sei como valorizar a minha vida se nunca vivi de facto apesar de me ter sentido muito vivo em vários momentos. Foi o choque da minha descoberta que me deixou assim, estéril.
Os últimos dias têm sido penosos uma vez que fui privado da minha estatura normal e posso afirmar que foi moroso o processo de subir para a secretária e depois para o computador. Mais árdua ainda foi a tarefa de me habituar a saltar de tecla em tecla para conseguir formar palavras sem cometer erros, porque desta perspectiva é complicado encontrar a letra certa. Confesso que os quatro primeiros dias em que estive cá em cima serviram apenas para decorar o caminho sobre o teclado. Agora que estou mais apto consigo mesmo escrever frases sem ter de atravessar todo o caminho até à tecla «backspace». Obviamente o meu diminuto tamanho dificulta a travessia e só hoje consegui dominar a técnica de caminhar sobre as teclas sem que acidentalmente digite uma letra que não quero utilizar. O processo é simples e não implica grande poder de raciocínio, mas eu estava demasiado abstraído a localizar-me, que não pensei em caminhar pelos vales. Um dos meus primeiros objectivos foi controlar as teclas «shift» e «ctrl» pois não poderia certamente pontuar correctamente. Então lembrei-me de utilizar um peso nessas teclas e andar então em direcção à tecla que fosse o meu alvo. Isto criou imediatamente um problema. Desconhecia a função das “teclas lentas”, activada pelo carregar da tecla «shift» durante um certo número de segundos. Foi tormentoso descobrir a solução para desactivar esta função prejudicial ao bom fluir da minha técnica de escrita. Com o passar do tempo consegui desvendar os mistérios e posso dizer com orgulho que domino agora o teclado. A correcção dos erros (porque me é impossível escrever sem erros) foi um obstáculo que superei com indubitável facilidade. Aqueles mais claros corrijo com o mover das setas e se porventura se tornar mais complicado empurro o rato para trás e para a frente mediante a necessidade. O «scroll» é a função mais acessível bastando-me rodar para cima e para baixo (se bem que às vezes escorregue um pouco no rato).
A alimentação em cima da secretária não foi uma objecção a estar lá. Fiquei agradecido às refeições que fiz lá em cima, e aos restos que nunca limpei. Cada migalha dá para duas refeições e até restos de carne consigo encontrar em certos recantos obsoletos a quando a minha altura era superior. Bebida sempre esteve lá. Como passava horas em frente ao monitor deixava sempre um copo para não me precisar levantar devido à sede. Somente precisei arrastar uns blocos para formar escadas e com o tubo vazio de uma caneta formar uma palha para sorver o líquido de dentro do copo. Pensei primeiro em baixar-me lá para dentro mas resolvi optar pela solução mais complicada pois não quereria que me acontecesse como acontece a alguns insectos voadores.
As necessidades físicas são feitas num cinzeiro usado. A cinza absorve quer a urina quer as fezes. Tenho saudades de fumar um cigarro mas a minha saúde melhorou. Durmo no tapete do rato; até é confortável mas durante a noite tenho um bocado de frio. O resto está bem. De facto sinto-me mais realizado agora que tenho o dia mais ocupado e embora todas as minhas tarefas sejam uma prova à minha paciência não tenho pensado nos meus problemas existencialistas. Não sei se quereria voltar à minha vida simplificada. Com este tamanho tenho de me preocupar com demasiados afazeres. Satura-me mas deito-me sem problemas, ou melhor, estou demasiado cansado para pensar neles.

2008-04-21

Dia 203

Dia 203:
Reforço o sentimento de impotência que sai de dentro de mim. Demorei mais um dia só para voltar ao meu quarto e estou perto da cama. Não consigo subir. Hoje vou deixar-me apenas descansar no chão duro e frio e tentar pensar numa solução para estes problemas. Se eu fosse uma personagem como a Alice encontraria certamente um bolo ou um pedaço de cogumelo que me faria crescer novamente…

Dias 193/194/195/196/197/198/199/200/201/202

Dia 193:
Ando a fazer vigílias na rua…
Não é que pressinta que algo está ou vá ficar errado mas sei-o… algo que intriga, o meu instinto não falha e quando falha é porque algo está errado!


Dia 194:
Continuo nas vigílias. Vejo entretanto uma cena que apesar de não me causar surpresa deixa-me a olhar especado. Sei que não é isto que está errado:
Alguém parte com um machado a porta da igreja una, santa, católica e apostólica… O público aplaude…
Pinheiros ardem…
Mulheres olham…
Os espaços estão tão vazios…
O sumo pontífice fode toda a corte papal e, enquanto pastor, o rebanho (não esquecer que o motivo principal do pastor possuir um rebanho é ter um modo de subsistência e alimento). Os cardeais que são fodidos pelo papa fodem os bispos, presbíteros, diáconos e o povo (obviamente). Os bispos fodem os seus irmãos arcebispos, os padres e os diáconos…não esquecendo o povo. Os presbíteros são enrabados por quase todo o clero mas ainda conseguem enrabar os pobres leigos e as ovelhas tendo especial carinho pelos borregos.
O povo assiste impávido e sereno…
Farto do espectáculo continuo a demanda de encontrar o que está errado.


Dia 195:
O meu diário tem dois formatos. Como acompanho a evolução dos tempos sinto-me forçado a ter um no formato digital. Contudo antes de me sentar numa cadeira a escrever sem caneta já tenho escrito no meu verdadeiro diário. Este anda sempre comigo e é um pequeno bloco. Um dia vai juntar-se a todos os outros diários que estão guardados no mesmo sítio para onde este vai. Não revelo o lugar porque não o quero encontrar. Então hoje decidi mostrar um pouco do original para que não me esqueça:


Dia 196:
O mistério continua e não sei quem são essas pessoas que vêm calmamente. São os anónimos. São estes os que passam por mim e que embora saiba que os conheça não sei donde e são também as pessoas que me conhecem, cumprimentam-me e não sei quem são. Por vezes sei o nome e não sei a quem pertence a face, outras vezes é o oposto, reconhecendo as faces e desconhecendo os nomes.
A maior parte do tempo acontece que não sei o que fazer a não ser ignorar. Isto porque quando não o faço fico dias inteiros a pensar. Por isso tento esquecer as pessoas e tudo se repete com ainda mais gente… torna-se um círculo vicioso de des-conhecidos.


Dia 197:
Sei que o meu problema não é o do dia anterior mas volto à estaca zero. É outra coisa, sei-o, e aproximo-me dele. Tive uma visão durante a noite e ele estava pendurado numa cabana perto da praia. (Sendo que a cidade, como que por magia, afastou-se do seu pólo e dirigiu-se à praia. Não é invulgar as cidades do meu mundo mudarem de lugar. O mais difícil é encontrá-las depois.)
A busca pelo que está errado continua…
Aproximo-me da conclusão….
Sigo as pistas…


Dia 198:
O dia de hoje decorreu com uma normalidade estranha, assustadora. Não fiz nada a não ser reunir os meus apontamentos e tirar elações. Escrevo tão rápido que a minha letra se torna praticamente uma linha ambígua e ilegível. Estou tão perto de chegar a uma conclusão que a minha aflição aumenta de intensidade e absorve-me por completo. Já nem vejo o meu rosto.


Dia 199:
Encontrei a resposta que tanto procurava e o que há de errado em tudo…
Agora preciso de me confrontar com a situação…


Dia 200:
Sou uma personagem descartável.
Os indícios que me levam a dizer isto vêm já de trás, muito antes de achar que algo de estranho se passava comigo, talvez logo à nascença o meu instinto me levasse a crer que o era mas só agora me consegui decidir a procurar a verdade. Os sinais eram óbvios. Não o estou a dizer de ânimo leve e já tentei refutar a minha própria teoria desde que a ela cheguei e não encontro um ponto fraco para que o possa fazer. As provas são irrefutáveis. Sou mesmo uma personagem. Daí me identificar com outras personagens (essas valiosas) e não conseguir ver o meu rosto quando mais preciso de o ver. A única prova de que possuo um rosto vem de uma imagem desfocada nas minhas memórias.
Os meus apontamentos são extensos e analisei-os em profundidade e não encontro uma forma de escapar embora o tente fazer numa linha, num ponto. Sou uma personagem.
Não sou um fantoche ou marioneta. Sei que tenho total liberdade de movimentos e expressão, consigo pensar por mim próprio porque de outro modo não conseguiria chegar a esta conclusão. Sei que não tive um deus criador porque nunca senti a sua mão sobre mim, mas então como nasci? Para esta questão não encontrei qualquer resposta mas não me apetece procurá-la.
Ao encontrar uma resposta só consegui encontrar mais perguntas, mais difíceis de responder. Estes factos retiram-me a energia de procurar algo mais que tenho receio de encontrar. Posso encontrar algo tão podre em mim que não queira mais viver.


Dia 201:
Sinto-me tão pequeno. Diminui tão drasticamente que demoro horas a andar o que anteriormente fazia num segundo. Mas não foi o meu corpo que diminuiu, esse consigo palpar e está do tamanho normal. É ao interior que me refiro, este é que diminuiu de tal forma que está mais pequeno que uma formiga. Ah, quem me dera ter o tamanho da formiga e ter a força proporcional ao seu tamanho. A minha força encontra equivalência no reino das plantas. Obviamente não possuo a força de uma árvore secular. A minha fragilidade é a de uma pequena flor. Já não tenho pétalas, sou só um caule verde, esguio, e uma ou duas folhas. Tenho medo de ser pisado. Ninguém pisa uma flor quando esta tem pétalas porque é bela. Mas quando se é um caule pode-se ser pisado, arrancado do chão, como uma erva daninha… E é o que me sinto agora. E é o que quero que me façam. Que me arranquem como se arrancam essas ervas daninhas, ou que me matem com um qualquer herbicida.
Por que motivo fui eu ser tão curioso? Podia ter-me simplesmente alienado e nunca descobriria que sou só uma personagem…


Dia 202:
Após um dia a caminhar cheguei à porta. Preciso mesmo de sair daqui e apanhar ar. Não tenho força para abrir a porta…

2008-04-10

Dia 192

Dia 192:
Isto são mesas apinhadas de gente que nunca mais acabam. É provável que não esteja lá ninguém e que isto passe um pouco de sonho, quero dizer, torna-se um pouco real. Hoje tive vários sonhos e lembro-me apenas dos da manhã.
Às 8h era uma espécie de peixe que não conseguia nadar e deixei-me secar em terra. Confesso que quando acordei estava um pouco abalado (e com sede). Continuei.
Adormeci e acordei (novamente) às 11h45m. Era eu, só, muito gordo. O meu tormento era fugir das pessoas que nem sequer me perseguiam mas eu, de tão obeso ser, não conseguia mexer-me…
Quando despertei tinha voltado ao normal.
Dia 192.1:
O que me preocupa agora são as estas mesas movediças que arrastam os homens e as mulheres nas cadeiras. Eu estou deitado na cama mas esta também se mexe com as mesas. Mas… como fui eu parar a uma sala apinhada de gente sentada em cadeiras anexadas a mesas que andam?
Só pode ter sido por causa da minha cama. Ela tem destas coisas...
Deve ter-se envolvido numa relação com uma das mesas pretas com pernas longas, arqueadas e castanhas. Talvez seja o ar metálico destas que atrai a cama onde durmo. Até compreendo mas aquelas mesas são demasiado jovens para a minha cama se envolver. Pode mesmo ser condenada à fogueira ou tornada em serradura.
Merece um castigo por ter-me trazido durante a noite sem autorização.
Caruncho…

Dia 191

Dia 191:
Eu sei que prometi contar a história do Crepúsculo e da Aurora. Vou fazê-lo…
Hoje é um bom dia para o fazer. O quê?
Pergunto-me o que é bom para fazer hoje mas deparo-me com a senhora Preguiça.
Como é seu costume impede-me de fazer o que quer que seja e a história dos meus amigos vai ter de ficar para a próxima… (
Déjà Vú ou qualquer coisa parecida. O que é não sei mas é colorido e tem riscas.)

Dias 176/177/178/179/180/181/182/183/184/185/186/187/188

Dia 176:
Os sintomas continuam a manifestar-se e o diagnóstico chegou ainda ontem e estes sintomas vão aumentar gradualmente nos próximos dias porque eu sei que vão porque vou estar lá para passar por tudo isso devido à minha incapacidade de conseguir escrever no dia a que estava destinado o dia anterior. Resultado disso é este modo de escrever com palavras que não são as palavras que deviam lá estar pela ordem certa onde me perdi porque se paro de escrever perco-me no que estava escrito e não consigo desenvolver mais devido à minha enfermidade e se escrevo agora é porque já estou melhor mesmo que não totalmente bem por causa da clavitose que me atinge neste instante e paro de escrever porque estou a tentar lembrar-me dos sintomas que esta doença me trará (trouxe) desde há uns dias atrás mas só ontem me foi diagnosticada pelo doutor Bayard ou qualquer nome parecido porque os sintomas primários da clavitose é perda de memória a curto prazo. É este o sintoma que me atormenta mais hoje juntamente à taquicardia conseguindo mesmo ouvir o meu coração dentro da cabeça e eis que chega a paranóia porque o meu coração vai rebentar nos próximos minutos. Consigo sentir a carótida pulsar-me nos dedos, a cabeça a rebentar… é um aneurisma, só pode ser um aneurisma. Tenho febre…
Durmo…


Dia 177:
Sinto-me um pouco melhor embora os sintomas primários desta doença infecciosa nunca cessem e como se sabe esta maleita não tem cura alguma a não ser uns cigarros para aliviar os prenúncios de tal moléstia da qual certos rumores dizem já haver cura mas as farmacêuticas estão a guardar só para os mais ricos e não me sinto nada rico hoje porque não tenho a cura para a doença que só os ricos podem comprar a cura impedindo que a imprensa revele as fontes daquele artigo cujo título era “As clavitoses e as suas curas – dualidade moral” um assunto a temer de facto. Sou apenas um clavitoso, a doença tem fases e certamente um dia destes abrandará o seu rumo e quando a apanhar desprevenida apanho-a e fecho-a num baú com cadeado e as outras clavitoses que andam aí não poderão encontra-la podendo encontrá-la podendo encontrá-la nos sítios onde guardei as outras. Poderia ser no máximo infectado outra vez mas isso não garante que eu volte a não fazer sentido porque o meu corpo desenvolva imunidade a clavitoses…


Dia 178:
Desmaiei em frente ao computador sem que a doença me tenha deixado exprimir o que sentia. Tenho neste preciso momento um rasgo de lucidez mas sei que não vai durar muito e não me vou alongar por causa disso. Os delírios intensificaram-se e não distingui o assento da cama. Passei os olhos pelos dias anteriores e vejo-me não fazer sentido, repetitivo…
Já começou o meu coração a bater. Sei que vem aí mais um ataque…
Dia 178.1:
Consigo ver as mariposas…
Alarme…


Dia 179:
Hoje, sim, é um bom dia.
Despertei de um sonho em que a clavitose me tinha deixado, aliás meramente ignorado. Sinto-me rejuvenescido e inteiramente saudável. Só tenho um problema mas não tem relação alguma com a doença que me afecta.
Mariposas gigantes são o meu problema!
Chegaram ontem pela noite. Primeiro veio uma só mariposa gigante que se limitou a pousar na parede e encarar-me fixamente. Quando vi a segunda ao meu lado, em direcção à luz do candeeiro, entrei em pânico. Se elas soubessem podiam matar-me já e obteriam comida para as duas. O meu corpo não as manteria por muito tempo; provavelmente se gostassem do manjar voltariam a matar.
Felizmente só se interessam pela luz e deixam-me em paz. Todavia farto-me de ouvir o choque contra a lâmpada seguido da sua queda no chão e da mariposa que insiste em me fitar da parede, imóvel.
Tenho medo de as enxotar não vá passar-lhes pela ideia atacar-me e devorar-me. Penso que as vespas gigantes são suas predadoras, logo podia deixar entrar umas quantas para que as matassem e deste modo o perigo cessaria imediatamente.
Estou mesmo a delirar; se permitisse que as vespas entrassem aqui, elas seguramente iriam virar-se contra mim depois de assassinarem as mariposas intrusas, tal como fazem os exércitos quando invadem um país (primeiro matam os intrusos e depois os nativos).
Após longa meditação sobre o tema, deparei-me com inúmeras estratégias falíveis e decido simplesmente ignorar os bichos.
Se os ignorar eles ignorar-me-ão.
De modo algum com este grau de enfermidade conseguiria vencê-los.
(…)



Dia 180:
Apresento sinais de melhorias.
As mariposas desapareceram. Espreito entre os lençóis com as mãos firmemente agarradas e não consigo encontrar-lhes o rasto. Foram embora.
Mais seguro, levanto-me, piso o corpo duma delas e vejo o outro mais adiante. Não parecem tão gigantes e muito menos assassinas…pelo contrário, vejo os restos dum bicho indefeso no meu pé e um corpo inerte a um metro.
Não percebo porque nada sobrevive no meu quarto além de mim. É provável que tenha infectado ambas com Clavitose e como o tempo de vida delas é menor, a doença alastra mais velozmente. Mas não acho possível uma doença tão grande atingir um ser tão pequeno a não ser que as tivesse atingido enquanto eram gigantes…
De qualquer modo não viveriam muito mais visto estarem já no estado adulto.
Se ainda fossem larvas sentia pena mas sendo assim consolo-me com o facto de não lhes tirar mais de um mês de vida.
Se fossem um casal podem já ter posto ovos na minha casa e em breve terei um monte de vermes pelo chão.
Não me vou debater sobre isso…Preciso de repouso absoluto…


Dia 181:
Recaída atinge-me de novo e desta veio para ficar e pelo menos é o que sinto nas costas que tormenta nesta mente confusa e se preciso ir ao médico tenho que ir antes que não consiga chegar. Afinal foi uma aparente recuperação falsa e esforcei-me para nada e sustive a respiração em vão……………………


Dia 182:
Não suporto mais. Preciso mesmo de visitar um especialista em clavitoses com esperança que ele me possa aconselhar a seguir o melhor tratamento.
É então que saio pela primeira vez à rua (sem contar com as outras) para fazer uma visita ao meu médico amigo. Recuso-me a voltar ao Dr. Bayard depois daquilo que ele me fez passar…Claro que levo açaime não me vá dar um ataque em plena rua. As pessoas olham para mim como um cão raivoso.
O meu médico é um senhor já velho chamado Malaquias e tem traços Einsteinianos à excepção da barba que neste caso é mais farta e dos óculos hiper-graduados que usa. Fala entre dentes e custa-me perceber o que ele quer dizer, tendo mesmo por vezes de me aproximar da sua boca para ouvir. Foi numa dessas vezes que quase lhe tocava nos lábios com a orelha direita que ele me disse, após um número infindável de exames, que eu não tenho clavitose. Vai mais longe e afirma categoricamente que esta doença da qual sou portador nem sequer existe, que sou portador duma outra doença, da qual nada ouvi falar, chamada hipocondria. É óbvio que me ri na cara dele e imaginei-o senil com tamanho fardo que é a sua idade.
Ele perguntou-me se tinha sido o charlatão do Dr. Bayard que me tinha diagnosticado a doença e se por acaso o tratamento era à base de rebuçadinhos da sua produção. Questionou-me também se me tinha garantido que apesar da minha doença esses rebuçados iriam aliviar os meus sintomas…
Respondi-lhe acenando com a cabeça positivamente… Ele disse que eu já não era o primeiro e comparou-me a Argan…
Fiquei indignado ao ser comparado com uma personagem tão ingénua…
Bati-lhe com a porta na cara e fui-me embora a correr…


Dia 183:
Não acredito…
Não posso acreditar que aquele doutor Malaquias tenha razão. Eu sinto que estou doente, visivelmente melhor, mas doente. Ele só pode estar a dizer-me isto para retirar clientes ao doutor Bayard já que ele é conhecido mundialmente pelos seus rebuçados miraculosos que curam tudo.
E sei que continuo doente por isso não pode ser mentira.





Dia 184:
Curado… Finalmente consegui superar esta doença e sem ajuda de médicos. Não estou a especular, tenho mesmo certeza absoluta e passo a esclarecer:
Tudo começou de manhã quando acordei, remeloso, e olhei em volta. Descobri que a Clavitose não estava aqui comigo no quarto. Primeiro estranhei mas depois lembrei-me do sonho que tive há dias atrás. E foi mesmo assim que aconteceu, esse sonho tornou-se realidade. Ia eu, Ego, a descer a rua que vai acabar noutra rua que dá para a praceta pequena que tem cinco cafés sem cadeiras. Acho que já lá bebi uns copos. Continuando, ia eu na rua que tem muito movimento especialmente aquela hora, naquele preciso minuto, quando passei pela clavitose que me tinha deixado sozinho no quarto. Quase que chocava contra ela, por isso posso dizer que era de facto ela e não outra clavitose. Era a minha clavitose…
A seguir quando os nossos corpos ficaram naquele impasse sem saber por que lado passar vi-a baixar os olhos e seguir sem me dizer nada e quando voltei a casa ainda não tinha voltado. Apercebo-me agora que nunca mais vai voltar. Acho que se fartou me mim, embora pensasse que até tínhamos conversas interessantes independentemente dela me estar a infectar ou não. Não ligo muito a isso e tento não me preocupar.


Dia 185:
Agora sinto-me só em casa…
Vou de mal a pior…


Dia 186:
Passeio…
Passeio pelos campos e pela cidade… passeio entre os canteiros e as áleas, entre os blocos e os arcos. Passo pelo miradouro e pelo repuxo de água, dispenso aquele sítio. Aquele sítio arrepia-me um bocado. Nunca fui lá e não quero ir. Está pintado naquela mancha esquisita que o envolve. Não sei o que se passa com aquele sítio, mas está podre e cheira mal.
Vou antes pelo outro lado.
Cheguei ao sítio.


Dia 187:
Tenho medo. Ao ver o meu pai e avô Ego Jeiyo lembro-me de tudo…
Claro que não os vi pessoalmente porque morreram há muito e isso estou farto de saber.
Por acaso não vi o espírito deles mas se visse não estranhava.
No entanto estou aqui a disparatar e esqueço-me do que quero dizer.
Fui ao cemitério visitá-los.
Estavam bem-dispostos e até petiscaram um queijo que eu tinha levado cortado aos cubos. Claro que também empurraram o queijito com um copo de vinho.
Esqueci-me do que tenho medo.



Dia 188:
Tenho medo de ter medo…

Dia 189:
Electrocutado, ganhei 10000 pontos só em bónus, por isso corri, corri, corri (sem parar).
Ganhei um bónus de 5000 por ter reparado, enquanto passava a correr, depois de ser electrocutado, que estava uma mulher sentada no café a fumar.
Acumulei mais 50000 por ter parado a tempo de tomar café e fumar um cigarro ao lado da mulher que estava a fumar electrocutada pelos meus 65000 pontos. Retirei-lhe os pontos que ela possuía porque ela não acabou de fumar o cigarro até ao fim antes de eu começar de novo a correr em direcção aos patos que sobrevoavam a piscina. Os pontos da senhora eram de 3472.
Game Over.
Não bati o recorde…


Dia 190:
Calar-me?!… Respondo-me…
Não tenho mais nada a dizer-me…

2008-03-25

Dia 175

Dia 175:
Considero-me filodoxo.
Sou bom ouvinte mas não há ninguém que eu ouça mais do que mim próprio e só em mim confio plenamente.
Sou
Dia 175.1:
Doente, fui ao médico hoje pela tarde. Após uma breve análise ele revelou-me o seu diagnóstico:
- O senhor Ego está com uma Clavitose aguda! – disse ele enquanto abanava a cabeça – Se cá tivesse vindo mais cedo eu poderia evitar que a infecção estivesse já tão disseminada!
No início custou-me acreditar achando mesmo por momentos que ele estivesse com uma daquelas piadas de médico. Logo aceitei o diagnóstico ao recordar-me dos sintomas que tenho vindo a sentir. Tantas precauções para nada. O médico tinha razão, eu podia ter evitado ficar assim se me decidisse mais cedo por ir lá em vez de ir consultar o ancião gigante. Devia ter imaginado que ele é imune às Clavitoses…
Oh… Que será feito de mim????...
Pálido e clavitoso, abandonei o consultório e meti-me na cama. Não quero correr o risco de causar uma pandemia!

Dias 169/170/171/172/173/174

Dia 169:
O Crepúsculo e a Aurora são os meus melhores amigos… Eram… eu abandonei-os…
A história de como eu os conheci perde-se algures nos anos em que também me conheci a mim. Isto não é bem verdade porque não me conheço tão bem a mim como os conheci a eles e certamente eles não me conheceram porque eu não permiti. A verdade anda bem longe disso e eu não me dou a conhecer a ninguém e não passaram assim tantos meses desde que os abandonei…
(Este diário seria supostamente uma elegia às minhas desventuras com eles mas para variar tentei esquecer demasiado rápido…)
A história do Ego com o Crepúsculo e a Aurora deve ser contada…
Outro dia…


Dia 170:
“Outrar-me”… Estou a precisar…
Mas não desejo ser qualquer mortal… Presentemente só encarnando Álvaro de Campos a atravessar o Suez me faria sentir vivo.
Sinto a réstia de energia que tenho esgotar-se.
Quanto anseio eu ser Lord Henry a fumar inúmeros cigarros enquanto corrompo Dorian Gray … Ou Basil o pintor amaldiçoado…
Quero ser Deus no Antigo Testamento e cheirar como Jean-Baptiste Grenouille os aromas pútridos do quarto de Gregor Samsas…
Sou só o Ego Jeiyo…
(E nem dá para fazer aquela cena à James Bond: Jeiyo… Ego Jeiyo… Mesmo que desse não o quereria fazer obviamente!)


Dia 171:
Sinto-me a gatinhar pelo ar e sei que é um sonho, não pelo gatinhar, porque me encontro de pernas para o ar. E deitado na cama não me movo, só os meus braços e pernas se mexem. Isto é contraditório porque me estou a mexer sem me mover e os lençóis são prova irrefutável disso. Eles continuam lá. Também devo constatar que é extremamente difícil gatinhar com pernas e braços em vez de patas quando estou com as costas no colchão. Andar de bicicleta, isso sim é mais fácil, sendo eu capaz de percorrer quilómetros sem transpirar. Contudo acordo cansado sem saber se é do exercício efectuado.
Gatinhar é diferente. Pode mesmo denominar-se desporto-rei do sonho. Não me considero atleta olímpico somente pelo facto de não ser capaz de miar enquanto me mexo sem me mover. Até tenho sorte nesse aspecto.
Há quem mie…
O pior é conciliar todas as capacidades e controlá-las ao ponto da perfeição. Muitos dos que miam não são capazes de se mexer sem se mover sendo que a maior parte deles move-se involuntariamente enquanto se mexe e outros, esses em menor número, movem-se sem se mexer.
Por isso escrevi que até tenho sorte; prefiro não emitir som algum que ser incapaz de me mexer sem me mover…
Desafortunados, malfadados…


Dia 172:
Tédio.


Dia 173:
Castelos, palácios e casas pequenas.
Vestidos de veludo, mesas metálicas, camas de castanheiro, armas destrutivas e deusas adoradas…



Dia 174:
Abalado, ouvi uma campainha que era um sino!