2008-05-11

Dias 204 a 222

Dias 204 a 222:
É a tremendo custo que volto a escrever. Antes de mais devo admitir que pensei inúmeras vezes em abandonar este diário e com ele a minha vida. Nem sequer sei como valorizar a minha vida se nunca vivi de facto apesar de me ter sentido muito vivo em vários momentos. Foi o choque da minha descoberta que me deixou assim, estéril.
Os últimos dias têm sido penosos uma vez que fui privado da minha estatura normal e posso afirmar que foi moroso o processo de subir para a secretária e depois para o computador. Mais árdua ainda foi a tarefa de me habituar a saltar de tecla em tecla para conseguir formar palavras sem cometer erros, porque desta perspectiva é complicado encontrar a letra certa. Confesso que os quatro primeiros dias em que estive cá em cima serviram apenas para decorar o caminho sobre o teclado. Agora que estou mais apto consigo mesmo escrever frases sem ter de atravessar todo o caminho até à tecla «backspace». Obviamente o meu diminuto tamanho dificulta a travessia e só hoje consegui dominar a técnica de caminhar sobre as teclas sem que acidentalmente digite uma letra que não quero utilizar. O processo é simples e não implica grande poder de raciocínio, mas eu estava demasiado abstraído a localizar-me, que não pensei em caminhar pelos vales. Um dos meus primeiros objectivos foi controlar as teclas «shift» e «ctrl» pois não poderia certamente pontuar correctamente. Então lembrei-me de utilizar um peso nessas teclas e andar então em direcção à tecla que fosse o meu alvo. Isto criou imediatamente um problema. Desconhecia a função das “teclas lentas”, activada pelo carregar da tecla «shift» durante um certo número de segundos. Foi tormentoso descobrir a solução para desactivar esta função prejudicial ao bom fluir da minha técnica de escrita. Com o passar do tempo consegui desvendar os mistérios e posso dizer com orgulho que domino agora o teclado. A correcção dos erros (porque me é impossível escrever sem erros) foi um obstáculo que superei com indubitável facilidade. Aqueles mais claros corrijo com o mover das setas e se porventura se tornar mais complicado empurro o rato para trás e para a frente mediante a necessidade. O «scroll» é a função mais acessível bastando-me rodar para cima e para baixo (se bem que às vezes escorregue um pouco no rato).
A alimentação em cima da secretária não foi uma objecção a estar lá. Fiquei agradecido às refeições que fiz lá em cima, e aos restos que nunca limpei. Cada migalha dá para duas refeições e até restos de carne consigo encontrar em certos recantos obsoletos a quando a minha altura era superior. Bebida sempre esteve lá. Como passava horas em frente ao monitor deixava sempre um copo para não me precisar levantar devido à sede. Somente precisei arrastar uns blocos para formar escadas e com o tubo vazio de uma caneta formar uma palha para sorver o líquido de dentro do copo. Pensei primeiro em baixar-me lá para dentro mas resolvi optar pela solução mais complicada pois não quereria que me acontecesse como acontece a alguns insectos voadores.
As necessidades físicas são feitas num cinzeiro usado. A cinza absorve quer a urina quer as fezes. Tenho saudades de fumar um cigarro mas a minha saúde melhorou. Durmo no tapete do rato; até é confortável mas durante a noite tenho um bocado de frio. O resto está bem. De facto sinto-me mais realizado agora que tenho o dia mais ocupado e embora todas as minhas tarefas sejam uma prova à minha paciência não tenho pensado nos meus problemas existencialistas. Não sei se quereria voltar à minha vida simplificada. Com este tamanho tenho de me preocupar com demasiados afazeres. Satura-me mas deito-me sem problemas, ou melhor, estou demasiado cansado para pensar neles.

Sem comentários: