2008-12-16

Mercurii, Martis, Solis, Martis dies

Mercurii dies:
Havia um dia de que costumava recordar-me. Esse dia era especial. Eu era criança. Apontei o dia no calendário de parede com um círculo vermelho para não me esquecer. Nesse ano era uma quarta-feira, como hoje. Eu era uma criança infeliz sentada numa cadeira de cozinha virada para a porta. Esperava que ela se abrisse. Em vez disso a porta na janela abriu-se e entrou um pequeno ser, um homem minúsculo, que parou a olhar para os meus pés descalços e sujos. Pedi-lhe que fechasse a porta da janela. Entrava corrente de ar e sentia o vento a subir a coluna vertebral.
Arrepiei-me. Um calafrio?
O pequeno homem fechou a janela. Agradeci e ele dirigiu-se a mim. Peguei nele, deixei-o equilibrar-se na palma da minha mão direita e perguntei-lhe o que estava ele ali a fazer. Respondeu que eu estava à espera dele. Como é que ele sabia? Nunca saberei.
Aquele era o meu dia especial. Ele trouxe-me o que lhe pedi. Agora esse dia deixou de ser especial.
Acho que já não sabem onde vivo.

Martis dies:
Nada para mim ou para ninguém. Não o mereço, ninguém o merece. Está um frio estranho que anestesia o cérebro. Não, não foi o fumo das castanhas assadas, foi o frio que me largou neste café ermo com as mãos geladas e sem saber o que estou aqui a fazer. As semelhanças com uma criatura morta-viva são incríveis. É assim que o frio me paralisa a mente.
Disse para mim próprio que não estou ali mas estou sem querer estar. Pisco os olhos, até os chego mesmo a fechar completamente mas nada desaparece.

Solis dies:
O dia prolongou-se por mais de 48 horas. Como é possível? Não sei, diz-me tu!
Penso que o sol se fartou de adormecer ou então a lua esqueceu-se de aparecer. “Tic tac”, diz o relógio para o homem em pé a olhar para o céu. Nunca mais é noite, responde a senhora de azul às riscas.
Sou um labirinto. Sou um tecido feito de plástico com padrões irregulares. Se não soubesse não diria mas parece mesmo irregular. À primeira vista não eram mas aqui perto sei que são.

Martis dies:
Sou uma pessoa solitária. O sonho é a melhor parte do meu dia porque vivo aventuras inimagináveis para o ser humano. Conheço o mundo, voo, caio num precipício sem morrer. O sonho falha-me, é injusto para comigo. Faz-me esquecê-lo, abandona-me num mar de lençóis pronto a enfrentar a triste realidade. Eu aproveito a doce inércia do acordar enquanto o sono me atrai e o frio do despertar me retrai. É nesses minutos que a realidade do sonho se mistura com a irrealidade do estar acordado, é nesses minutos que lembro os sonhos. O sonho funciona como uma nuvem branca que se dispersa nesses ínfimos minutos; deixa apenas uns vapores que também se desfazem ao longo do dia. Talvez o sonho tenha sido feito para ser esquecido.
Para que não me lembre do que eu já fui um dia.
Talvez eu não pertença ao mundo onírico…