2008-05-30

Dia 241

Dia 241:
(Só hoje consegui vir aqui e escrever de memória o que se passou nos dias anteriores. Estes têm sido dificultados por razões que ainda desconheço e por momentos prefiro não saber. Entretanto vou continuar a navegar neste mundo que é o único que tenho disponível: a internet.)
Sonho com o dia em que possa voltar a ser eu, o Ego Jeiyo dos velhos tempos, do velho tamanho. Preciso sair de casa. Sinto-me abandonado. Queria que alguém procurasse por mim com uma lupa. Acho que com algo que me ampliasse poderiam ver que eu estava aqui e que não desapareci totalmente.
Quero viajar, deambular por ruas de calçada molhada, voar rasgando nuvens de algodão doce com forma de coelho ou elefante…
Tenho saudades…
Não posso sair desta clausura…
Sou só uma personagem…

Dias 229/230/231/232/233/234/235/236/237/238/239/240

Dia 229:
Um banho na água que posso beber está decididamente fora de questão. Contudo tenho que arranjar uma solução para a escassez de recursos que começa a surgir como um pequeno senão e porventura irá tornar-se a causa da minha morte.
Hibernação foi a primeira solução que ponderei, sendo a mais plausível, contando com o facto de poder poupar comida e bebida, para não falar que enquanto estivesse nesse estado poderia não pensar nestes problemas. A verdade é que durante todos os dias que passasse nesse estado, pesadelos irromperiam através dos sonhos e eles não cessariam. Acredito que para resolver problemas é preciso enfrentá-los. (Todavia esta bela teoria não se aplica a mim, preferindo eu evitá-los, esquecê-los…)
Hibernar não seria a solução. Apenas estaria a adiar o inevitável. Os animais que se colocam num estado dormente em alturas que rareiam alimentos sabem que na época em que despertam há fartura. Eu, por outro lado, sei que terei os mesmos alimentos que agora, ou ainda menos, podendo até ser roubado, e no momento em que acordasse estaria já morto. De qualquer forma não tenho bens alimentares suficientes para me engordar ao ponto de passar tal privação. Logo, recorrer à letargia é uma atitude insensata que não devo tomar.
Outro método que poderia falhar, por motivos muito semelhantes a estes, é o racionamento de recursos.
Tenho que encontrar uma medida que funcione…
E não posso deixar-me arrastar nesta condição.


Dia 230:
Após ponderação nocturna em que equacionei múltiplos factores resumi-me a dois desfechos possíveis.
A primeira destas resoluções é a mais fácil de concretizar e resolveria todos os meus problemas. Todos… nunca mais necessitaria preocupar-me com a palavra problema e as suas causas ou com a palavra solução e as suas incertezas. É ao suicídio que me refiro. Bastava lançar-me da secretária e seria o fim, deste diário, da minha dualidade, de tudo, de nada… A queda seria alta mediante o meu tamanho insignificante. Seria fatal… É nesta solução que me debruço neste momento e (in)felizmente não encontro muitos pontos negativos.
A outra das duas soluções possíveis a que cheguei é a excursão pelo quarto à procura de outros restos que tenha deixado em mais cantos obsoletos. A viagem seria longa e penosa. A probabilidade de encontrar alimento seria enorme uma vez que não costumava limpar frequentemente os meus aposentos, e tinha o hábito de comer aqui. Cria-se o problema da bebida. Como poderei eu carregar líquidos na minha demanda? Já houve uma altura em que não precisei beber e percorri longas distâncias sem sequer me lembrar.
É essa a chave, esquecer-me…
Se me esquecer não precisarei iniciar uma busca, mas enquanto me lembrar que me tenho de esquecer não conseguirei esquecer…


Dia 231:
Tentei não me lembrar mas não consegui.
É extremamente difícil esquecer que não me quero lembrar que tenho que esquecer o que estou continuamente a lembrar.
Que dor de cabeça…
Estou farto, vou optar pela solução mais fácil. Dirijo-me para a berma da secretária e olho para baixo. A altura é vertiginosa; dou o passo em direcção a esse abismo. Não consigo… Tento lançar-me, tento empurrar-me, tento mesmo somente deixar-me cair e não consigo atingir o fundo. É como se algo, uma parede, me impedisse de avançar mais… É como se alguém superior a mim me segurasse no ponto de queda…
Que merda…
Não tenho livre-arbítrio…


Dia 232:
Foi decidido. Não posso ficar cá em cima à espera que alguém me liberte; sinto-me preso; obrigado a fazer o que não quero. Sinto-me a enfrentar um castigo que não mereço, desde que cheguei a conclusões. Ah, se pelo menos a minha curiosidade não tivesse levado a melhor!!!
Existe algo ou alguém que me guia, que decide o que decido… triste fado…


Dia 233:
Resta-me partir… Abandonar este porto seguro sem saber se existe bilhete de volta.


Dia 234:



Dia 235:



Dia 236:



Dia 237:
Cheguei neste dia ao piso. O pó acumulou-se desde que diminui e sinto que este território me foi retirado. Um arrepio é o sinal… já não me sinto seguro. A locomoção é dificultada pelo pó que deixa o ar pesado, quase irrespirável.
Por outro lado encontro comida suficiente para armazenar. Escondo-a num ponto seguro e faço investidas aos arredores retornando sempre a este ponto. A comida está bolorenta ou dura, mas não posso queixar-me, é melhor que não haver nenhuma migalha. Farei o mesmo nos dias seguintes…


Dia 238:



Dia 239:
Estou exausto…
Consegui arranjar mantimentos para vários meses se for necessário. O mais complicado será levar isto lá para cima. Olho, e o topo da mesa parece ser tão distante. Mas tenho de fazer este último esforço, por mim…
Sono, sono, sono, sono, sono, sonho!
Tenho de me manter acordado!
A viagem começou hoje e já me sinto tão cansado…


Dia 240:
Não acredito em milagres mas o que me aconteceu é no mínimo bizarro. Ao acordar qual foi a minha surpresa ao descobrir que me encontrava no cimo da minha secretária, dentro do meu esconderijo… Primeiro fiquei feliz por ter vindo cá parar de novo, visto que me sinto mais seguro. Ao fazer a ronda para ver se estava tudo bem vi que não tinha mais água nem alimentos e olhei lá para baixo e os outros alimentos estão lá onde os guardei. O que me trouxe aqui pode ter-me ajudado. Porquê então desprover-me de bens necessários à minha sobrevivência. Ter-me-á colocado aqui para morrer? E onde está a minha água? Quem me der ter aqui um cigarro… Estou com ataques de ansiedade…
Dia 240.1:
Mais bizarro é não ter fome ou sede. Sinto-me bem… Já não percebo nada. Se não me esqueci que necessitava de comer e de beber, por que já não sinto necessidade?
Não vou questionar… sempre que questionei aconteceu-me algo pior ainda…
Vou deixar-me seguir o meu rumo sem mais atrasos já que não tenho necessidades. Estou desprovido, vazio…

2008-05-16

Dia 228

Dia 228:
Tresando… Primeiro considerei ser o cheiro dos restos mortais de algum bicho mas este odor provém de mim. Não me lavo desde que fui afectado por aquela tragédia que não ouso pronunciar. Ai, se eu não fosse tão curioso!
Que raiva. Dualidade, tomar banho ou ver as minhas reservas de água esgotarem. Já não são muitas porque estou sempre sedento de mais líquidos…

Dias 225/226/227

Dia 225:
O episódio de ontem deixou-me, além de transtornado, paranóico. E este sentimento delirante obrigou-me a fugir sempre que ouvi um som. Até a voz do meu pensamento me fez correr para o mesmo esconderijo. Isto levou a que não fizesse mais nada do que esconder-me e voltar a caminhar para o computador. Estou estafado…
Por outro lado devo constatar que vi a lua, entre as nuvens. Quis aproximar-me da janela para ter uma melhor vista mas isso demoraria demasiado tempo, então permaneci por aqui, sempre atento ao redor para me evadir velozmente.
Para o refúgio…


Dia 226:
E continua esta impressão que me faz arrancar os cabelos, que me traz calafrios, que me faz ficar sem dormir dias, que me limita, que me absorve os pensamentos…
E se está tudo na minha cabeça?
E se nunca a aranha matou a mosca?
E se quer a mosca quer a aranha nunca tenham existido?
A única convicção que tenho: estou reduzido a uma ínfima parte da minha dimensão…


Dia 227:
Dormir no meu abrigo é desconfortável. A corrente de ar é menor que em cima do tapete do rato mas adormecer lá equivalia àquelas noites de verão em que adormecia na relva orvalhada. Sentia-me livre. Aqui mal consigo respirar…
Temo que a aranha volte para me devorar, para não referir os pesadelos em que ela me devora enquanto durmo. É estranho dormir a sonhar que sonho comigo a dormitar e ser morto. Acordo angustiado.
Claustrofóbico. Passaram inúmeros dias em que não saí da secretária e este pequeno mundo está a enlouquecer-me. A minha escolha de vir viver para a secretária não foi em vão. Pela internet consigo manter-me actualizado e sei tudo o que se passa nesse mundo virtual. No pior caso estou a ser manipulado e nada do que leio e vejo está a acontecer. Às vezes gostava que isso fosse verdade. Parece que tudo que acontece está mal devido a ideologias. Queria abdicar de todas, as minhas preferencialmente. Quero ver com os meus olhos e abandonar o monitor.
Quero crescer novamente…
Estou preso…

2008-05-13

Dia 224

Dia 224:
Dia perigoso este…
Estava eu a tentar comunicar com uma varejeira que, por sinal, era até bem simpática quando a minha paz foi destruída. Até aqui a secretária aparentava ser um lugar calmo mas o desenvolvimento desta história mostrou-me o oposto:
Enquanto ouvia o zumbido daquela mosca, tentava interpretá-lo, e talvez conseguisse aprender a sua língua, tornando-nos confidentes. Numa situação normal não escolheria um insecto que deposita ovos em corpos mortos e que defeca em tudo quanto é branco… A solidão que tenho enfrentado cá em cima é que me fez repensar as minhas amizades.
Num momento em que tentava zumbir para ela, esforçando-me para expressar vagarosamente nesse zumbido as palavras “ não estou a perceber nada, zumbe mais devagar”, cujo som se assemelhava a zzzezzzzezzzzzzezzzzezzezezzze, apareceu de surpresa uma aranha e capturou a minha recente amiga. É verdade que não nos entendíamos mas a nossa relação estava apenas no início, e pelo desenrolar das coisas teríamos muito tempo para nos conhecermos melhor. Abalado pelo choque, comecei a correr em direcção a um qualquer abrigo; fui parar ao local onde estavam os restos de comida. Foi um gesto instintivo que provavelmente me salvou a vida, porque ainda não tinha comido nada (em muito devido ao facto de não querer partilhar com a mosca) e não sabia quanto tempo mais ia permanecer lá. Arrastei uma folha velha, encorrilhada, de um rascunho; deixei apenas um buraco para poder espreitar. Pela primeira vez desde que estou cá em cima desejei ter a minha força normal para esmagar a aranha. Tive medo. Ela matou a minha nova amiga!
Dia 224.1:
Passaram horas… penso ser já noite.
Afasto o papel devagar, conoto que já não estavam lá, nem a aranha nem a mosca. Verifico bem primeiro, olho por/para todo o lado e nem sinal de ambas.
Resta-me por mãos à obra…
Ainda tenho muito que fazer…

2008-05-11

Dia 223

Dia 223:
As pessoas vêm e vão embora, quase tão rápidos quanto chegaram. Chamam por mim. O interesse delas não há-de ser muito porque de outro modo procurar-me-iam por aí. Até a Dona Preguiça me visitou, reconheci-a pela sua voz, e rapidamente voltou a sair. Não é que a sua companhia me faça falta. Ela é demasiado incapacitante.
Mas houve a presença de alguém que me enraiveceu. Não consegui distinguir a voz entre as outras vozes porque a porta é ainda a uma certa distância da secretária de onde me encontro. A voz, após chamar por mim intermitentemente, começou a balbuciar palavras ofensivas entre as quais proferiu o seguinte:
-Ah, não deve estar em casa… Também não importa, da maneira que o Ego é, deve ter ido para algum lado sem sequer avisar…
-Ele é mesmo assim! - Respondeu outra voz.
-Pois é… Ele não se importa com ninguém a não ser com ele próprio, egocêntrico como é. Podes crer que quando precisar de nós vem a correr com o rabinho entre as pernas e aí vai comer-nos na palma da mão.
Ai, se eu tivesse o meu volume normal; certamente irromperia pela porta e descobriria quem estava ali a conspirar contra mim. Que pensam eles conhecer de mim para me julgarem. Não farão eles a mesma coisa quando precisam de mim?
É demasiado fácil atribuir aos outros os defeitos da generalidade. Não consegui decifrar a voz… ainda pus em causa muitas pessoas mas não consegui ter convicções… enfim… tenho longas distâncias a caminhar todos os dias e muito para saltitar para me preocupar com hipocrisias… não me vão depois dizer isso na cara…

Dias 204 a 222

Dias 204 a 222:
É a tremendo custo que volto a escrever. Antes de mais devo admitir que pensei inúmeras vezes em abandonar este diário e com ele a minha vida. Nem sequer sei como valorizar a minha vida se nunca vivi de facto apesar de me ter sentido muito vivo em vários momentos. Foi o choque da minha descoberta que me deixou assim, estéril.
Os últimos dias têm sido penosos uma vez que fui privado da minha estatura normal e posso afirmar que foi moroso o processo de subir para a secretária e depois para o computador. Mais árdua ainda foi a tarefa de me habituar a saltar de tecla em tecla para conseguir formar palavras sem cometer erros, porque desta perspectiva é complicado encontrar a letra certa. Confesso que os quatro primeiros dias em que estive cá em cima serviram apenas para decorar o caminho sobre o teclado. Agora que estou mais apto consigo mesmo escrever frases sem ter de atravessar todo o caminho até à tecla «backspace». Obviamente o meu diminuto tamanho dificulta a travessia e só hoje consegui dominar a técnica de caminhar sobre as teclas sem que acidentalmente digite uma letra que não quero utilizar. O processo é simples e não implica grande poder de raciocínio, mas eu estava demasiado abstraído a localizar-me, que não pensei em caminhar pelos vales. Um dos meus primeiros objectivos foi controlar as teclas «shift» e «ctrl» pois não poderia certamente pontuar correctamente. Então lembrei-me de utilizar um peso nessas teclas e andar então em direcção à tecla que fosse o meu alvo. Isto criou imediatamente um problema. Desconhecia a função das “teclas lentas”, activada pelo carregar da tecla «shift» durante um certo número de segundos. Foi tormentoso descobrir a solução para desactivar esta função prejudicial ao bom fluir da minha técnica de escrita. Com o passar do tempo consegui desvendar os mistérios e posso dizer com orgulho que domino agora o teclado. A correcção dos erros (porque me é impossível escrever sem erros) foi um obstáculo que superei com indubitável facilidade. Aqueles mais claros corrijo com o mover das setas e se porventura se tornar mais complicado empurro o rato para trás e para a frente mediante a necessidade. O «scroll» é a função mais acessível bastando-me rodar para cima e para baixo (se bem que às vezes escorregue um pouco no rato).
A alimentação em cima da secretária não foi uma objecção a estar lá. Fiquei agradecido às refeições que fiz lá em cima, e aos restos que nunca limpei. Cada migalha dá para duas refeições e até restos de carne consigo encontrar em certos recantos obsoletos a quando a minha altura era superior. Bebida sempre esteve lá. Como passava horas em frente ao monitor deixava sempre um copo para não me precisar levantar devido à sede. Somente precisei arrastar uns blocos para formar escadas e com o tubo vazio de uma caneta formar uma palha para sorver o líquido de dentro do copo. Pensei primeiro em baixar-me lá para dentro mas resolvi optar pela solução mais complicada pois não quereria que me acontecesse como acontece a alguns insectos voadores.
As necessidades físicas são feitas num cinzeiro usado. A cinza absorve quer a urina quer as fezes. Tenho saudades de fumar um cigarro mas a minha saúde melhorou. Durmo no tapete do rato; até é confortável mas durante a noite tenho um bocado de frio. O resto está bem. De facto sinto-me mais realizado agora que tenho o dia mais ocupado e embora todas as minhas tarefas sejam uma prova à minha paciência não tenho pensado nos meus problemas existencialistas. Não sei se quereria voltar à minha vida simplificada. Com este tamanho tenho de me preocupar com demasiados afazeres. Satura-me mas deito-me sem problemas, ou melhor, estou demasiado cansado para pensar neles.