2012-01-30




Cartões às costas e pernas ao caminho. Parei aqui, sentei-me nas escadas debaixo do alpendre, encostado à coluna. Cartões no chão, uma beata daí apanhada, uma bela beata de quem não gosta de fumar ou de quem não teve tempo para o fazer. Caixa de fósforos, um fósforo. Desinfectei o filtro com a chama, acendi a ponta antes que o fósforo me queimasse os dedos. Após o merecido descanso, a árdua tarefa de armar tenda de papel para aqui pernoitar. A brisa que corria ao início da tarde irritou-se e transformou-se num vendaval tornando a minha tarefa digna de Hércules. Passada umas horas é noite, o frio açoita-me as orelhas, as mãos, os pés. Impossível manter os cartões em pé. Resta-me usá-los como cobertores. Adormeço com o meu estômago a rugir ferozmente por comida e com medo que o gelado ar me provoque ulcerações ou pior.
Não sei que horas eram quando ouvi o barulho. É complicado discernir o tempo quando ele é instável, quando parece parar ele acelera, e vice-versa. O alpendre do prédio onde me abriguei estava todo escuro à excepção de uma linha oblíqua rasgada pela luz de um candeeiro na rua. Era nesse rasgo que se encontrava um perfil desfigurado de um homem visivelmente sem-abrigo, como eu. Os olhos sobressaíam, não sei se sorria ou se estava zangado. Os traços deste vulto desapareciam, contorciam ou camuflavam-se no breu ao menor gesto. Não parava de olhar. Comecei a ficar assustado. Levantei-me, nervoso.
“Não bás embora. Este é o meu sítio, percebes? Mas não precisas de ir embora, é bom ter companhia.”
“Desculpa. Não vi aqui nada quando cheguei, pensei que estava desocupado.”
“Desocupado não tá como podes ber. Se andasses por aí há muito tempo saberias que este lugar sempre foi meu, podes perguntar a quem quiseres. As minhas coisas não tão aqui porque andam sempre comigo, percebes? Não quero que mas roubem, percebes? Durante o dia ando a badiar pelas ruas mas à noite, quando o frio aperta, benho pr’aqui. Tá aqui o meu nome na parede, bês?”
Apontou para a parede mas não vi nada. Os meus olhos habituavam-se já à pouca luz existente mas era, ainda assim, insuficiente para distinguir na parede o que quer que estivesse ali riscado. No entanto não consegui deixar de reparar na aprimorada e bizarra estrutura onde o homem se encontrava. Não deixava de ser uma barraca improvisada mas tinha um aspecto sólido e cómodo, mais resistente que uma casa e igualmente aconchegante.
“Bejo que cobiças a minha casa. É ela a razão por que nunca deixo nada para trás. Não quero que ma roubem, percebes? Tem tudo que eu preciso. É forte, impenetrável, como as bontades, percebes? Demorei a construi-la, chamaram-me maluquinho e tudo mas agora quem se ri sou eu. Todos a inbejam.”
“Eu não invejo a tua casa. Tenho frio, só isso, e parece-me um sítio abrigado. Nem sei como conseguiste pôr isso em pé. Passei horas a tentar equilibrar os meus cartões. E tu, no meio deste vendaval, conseguiste armar a tenda e nem se mexe. Mas do que é feita, mesmo? Só vejo bocados de papel agregados.”
O homem começou a olhar para mim desconfiado, reflectia, primeiro em silêncio, como se decidisse o futuro do planeta, depois murmurando baixinho enquanto abanava a cabeça e o dedo indicador numa direcção e depois na outra. Calou-se. Olhou-me de cima a baixo e logo disse que podia passar a noite ali desde que não fizesse mais perguntas sobre a casa.
“Aproxima-te e encosta-te deste lado que as minhas paredes protegem-te do vento.”
Vi a sua cabeça desaparecer no papel. Seria melhor entrar mas não consegui pedir-lhe. Encostei-me ao sítio que ele me aconselhou e deixei o frágil sono voltar.

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