2012-01-19

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Exílio. Terra sem lugar, sem tempo. Tempo paralisado. Eu paralisado.
Um punhado de almas generosas que nem sequer conheço pessoalmente deu-me a honra de poder escrever algumas linhas num bocado de papel virtual. “O sangue é por tua conta”, disseram. Eu sei bem que a tinta é por minha conta, sempre foi. Na terra onde não há canetas, nem lápis, nem sequer um bocado de carvão, o sangue é sempre por nossa conta. Tenho que o arranjar de alguma forma. Recorro ao meu corpo e ao de alguns cadáveres que descem o rio. Profanar cadáveres não é crime aqui, podemos matar impunemente, violar os corpos sem alma, levada pelas águas.
Passaram meses desde que tudo aconteceu. Parecem séculos. Recebi a sentença acreditando que ela nunca seria executada. Custa-me acreditar que as coisas mudam, no entanto as mudanças carregam-nos às costas como mulas e, se não podem com o nosso peso, arrastam-nos pelo chão. A única coisa que me permite suportar o exílio é a ligação que consigo ainda sustentar com a minha anterior realidade. É frágil este vínculo, não consigo mantê-lo durante muito tempo, apenas o suficiente para me fazer acreditar que o mundo não acabou à minha volta.
Duas pessoas são mais importantes que as outras neste processo. Um deles é o guarda da fronteira que me deixa passar incólume para deambular durante dias entre vielas. Ninguém parece já lembrar-se de mim, às vezes sou ignorado pelo próprio guarda que me deixa simplesmente entrar no país donde fui expulso. Outras vezes tenho que ficar horas a ouvi-lo contar as histórias de como se tornou agente aduaneiro, de como evitou que o país ficasse em risco inúmeras vezes. É uma pessoa interessante, contudo perde-se no período das suas próprias histórias. A outra é a dona do albergue. Tendo sido desterrado fui privado dos documentos que me identificam e isso é usualmente necessário para que me seja permitida a estadia. A mulher, apesar de carrancuda, deixa-me ficar num dos quartos escondidos no fundo do albergue. Uma velha, baixa, que só se queixa das dores de dentes e das dores de vida. No entanto tem uma vida bastante fácil. Não lhe digo isso obviamente, não vá ela expulsar-me do meu quarto, obrigando a esconder-me em buracos bem piores.
Recordações de casa. Os mesmos cantos empoeirados de sempre. Visitas. Pessoas do passado, passageiros das minhas vivências vieram durante os últimos dias inquirir-me, felicitar-me, achincalhar-me, despedir-se.
Os homens que me vieram buscar. As suas gabardinas. Conversa com os homens. “Não é pessoal, amigo. Estamos a cumprir o nosso trabalho. Não leve a mal.” Pobres homens. Paupérrimos homens.

Encerrar de um capítulo. Já vem atrasado. Lamento fazê-lo de uma pátria que não é a minha. O meu crime. O crime de ter roubado um corpo. Um corpo que jamais seria meu. Um corpo que nunca desejou ser meu. O corpo que sempre desejei. O pecado da cobiça. O corpo que perdi. Perdi as ligações sem as ter perdido.
Passei por mentiroso, certamente. Continuo a passar por ardiloso, um impostor, filho da Hipocrisia e do Fingimento. Ela não é minha mãe e não foi isso que sucedeu. Sou órfão. É muito mais complicado que isso. Se quisesse não conseguiria explicar. Quaisquer que fossem as palavras que usasse serviriam de nada no meu caso. Possivelmente seria melhor representado por um advogado. Nenhum desses bichos me quis representar.
O meu exílio não é constante, admito a custo. Voltei e vi que nada mudara em mim. Que merda foi essa? Pareço criar a premissa para um imbróglio. Imbróglio que eu criei para mim e como tal, não me consigo livrar dele.
E agora? Permaneço igual, com mais uma peça, menos uma peça; o que é que isso importa? O que ganhei eu com isto tudo a não ser o meu exílio? Como posso considerar o exílio uma vitória. Sou estúpido ou quê?
(Foi quando reparei que as ligações são muito mais frágeis do que julgara, que eu valho muito menos do que pensara.)

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