Solis dies:
Mors Omnia Solvit
Já chega, não aguento mais!
Hoje vou morrer. Vou morrer por mais uns tempos, deixar-me ficar inerte no branco vazio onde me deixaram. Acabam hoje as folhas em branco onde risco as palavras alucinadas do louco. Fui usurpado de mim, retiraram-me o espaço onde nasci, onde fui criado, onde evoluí até hoje.
Hoje vou morrer. Roubaram-me o meio envolvente, o meu suor, as minhas palavras. Tiraram-me tudo o que vi no mundo, páginas e páginas onde caminhei, teclas que outrora, diminuto pela minha força de vontade, pisei no esforço do trabalho de quem descreve a sua inútil vida.
“O Ego vai morrer, o Ego tem que morrer até renascer”, dizem as vozes. Eu, o Ego, vou destruir-me por causa disso. O tempo está a acabar, o meu espaço a terminar. É como se a televisão se desligasse e rapidamente o ecrã vai a preto, permanecendo o círculo no centro, branco, e então… puff… desliga-se.
Estou cansado, tão cansado.
Prolongo o meu prazo de validade. Nos últimos dias sou vítima de um entorpecimento que me avisa que o fim está próximo.
Penso em deixar-me morrer de fome.
Não como há três dias.
Não consigo deixar de beber.
Aflige-me a secura.
Sei contudo que a minha morte está próxima pois começo a fraquejar e o mais fácil dos movimentos demora séculos a executar. Ao escrever em papel a minha caligrafia não passa de um gatafunho só a mim perceptível. Morrerei em breve por todos os motivos que consigo imaginar.
Sem-abrigo.
Não tenho casa e quero lá voltar em breve. Quando voltar ao meu refugio deixar-me-ei desfalecer na minha cama de pedras e plástico.
Pergunto-me se será hoje o dia em que morro…
Ao acordar dorido, no meio das pedras e do plástico, faço pela primeira vez neste dia, a pergunta:
Morro ou deixo-me viver?
Escrevo “pela primeira vez neste dia,” porque ao longo destes meses deambulo apenas entre pensamentos sobre a morte, o suicídio concretizado e os dias comatosos em que estive mesmo morto. Foi um ano perdido, em que me perdi e perdi muitas pessoas no processo. Perdi capacidades e perdi memórias. Perdi a noção de quem sou, de quem fui e como nasci. Deixei de viver, vivi na morte.
Estou de passagem numa espiral. É uma linha ténue, bidimensional. De um lado é vida, do outro é morte. Eu estou no lado da morte. Piso a linha, morto, cheiro a morto, vejo mortos. Só vejo mortos.
Vagueio...
Tenho a sede do homem morto. As moscas sobrevoam o meu corpo esperando depositar os seus ovos.
Pousam.
Afugento-as.
Quando morrer vou deixá-las colocar as suas larvas em mim, vou deixá-las criar vida a partir de mim. É positivo saber que de um cadáver sai vida. Não me importava que necrófagos viessem buscar a sua parte. Não vejo nenhuns e não consigo procurá-los.
Os tempos mudam e com um pouco de sorte quando renascer talvez eu mude com o tempo e tudo em mim seja diferente. Não desejo passar mais um ano a morrer. A morte é a saída mais fácil de todas que eu poderia ter optado, isso é inegável, mas não quero seguir novamente a saída mais fácil.
Chamaram-me cobarde por não querer lutar mas quem me chamou cobarde tem medo de morrer. Tive medo de lutar. Tive coragem para morrer. E daí? Outros têm coragem para lutar mas pavor da morte.
A minha Razão vem de um turbilhão de conflitos mentais que saem para a folha, confusos, dispersos. É difícil segurar a caneta, é mais fácil morrer.
Deito-me…
Bebo mais um travo mas continuo com sede…
O vazio aproxima-se.
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