2009-04-23

Martis dies

Martis dies:

O aperto no peito continua a fazer-se sentir conquanto menos angustiante. Presentemente não tenho medo. Treino a respiração para que isto aconteça.

Tenho um buraco no estômago por onde vejo o outro lado quando me olho. É engraçado quando o faço, é como se estivesse a ver através das costas mas invertido. Tentei virar a cabeça para ver direito mas ouvi um estalido e parei. Tentei manipular a minha mente para que a minha visão visse as imagens direito e as invertesse mas não consegui porque ela já está formatada para ver as imagens invertidas e ordená-las depois naquele emaranho visual. Já não sei qual é a ordem certa porque se vimos ao contrário e depois invertemos as imagens, então não será a visão invertida a real?

Fui sentar-me num café para não pensar tanto. Disseram-me antes de lá chegar que quanto mais me fecho mais necessidade tenho de estar fechado. No café, depois de me instalar, comecei uma conversa telepática com um pombo acinzentado que me fixava na esperança de lhe dar comida. Eu estava sem estômago, logo, disse-lhe que não podia regurgitar algo para ele. O pequeno pombo percebeu mas deixou-se estar assim, parado, a olhar para mim como se fosse ainda possível que aquele buraco fosse preenchido por carne a qualquer instante e não deixasse mais de e ver aquele túnel ensanguentado que funcionava como janela para o exterior, por outros órgãos. Disse-lhe que hoje já não seria possível alimentá-lo e que se estivesse ali pelo alimento podia virar costas e voar. Ele respondeu que não era somente por isso. Claro que se esse buraco se preenchesse ele faria aquela cara que dá pena, abriria o bico na minha direcção e faria aquela chieira característica de um borracho à espera de alimento dos progenitores mas como tinha a noção que isso não conteceria, então contentava-se a contemplar-me.

-Que motivos tens tu para me contemplares? Sou eu, por acaso, algo digno de admiração? Não posso ser-te útil em nada, vai-te embora. Voa para o teu poleiro.

O pombo, pausou uns segundos, então esvoaçou para cima da minha mesa, olhou em volta à procura de migalhas, mas acabou por se deter em frente a mim e começou assim:

-Vou contar-te uma história. Quando nasci, nasci num ninho longe daqui, num campo. Pode dizer-se que tive sorte porque a época de caça ao pombo tinha terminado e os meus pais não tiveram dificuldade em arranjar-me sementes para crescer forte. Quando a época de caça começou já eu era um jovem pombo a viver na cidade e aqui a vida é mais fácil. O Homem faz lixo suficiente para alimentar bandos de pombos.

Já os meus vizinhos piscos não tiveram tanta sorte. Construíram o ninho. Quando puseram os ovos, um cuco, essa ave preguiçosa, charlatã e oportunista, pôs um dos seus ovos no ninho dos piscos sem que estes se apercebessem. Quando os ovos eclodiram, o cuco, já maior que as outras crias, aproveitou uma hora em que os progenitores estavam a procurar larvas e insectos para os seus filhotes, para lançar as pequenas crias ainda depenadas abaixo do ninho. Ao chegarem os pais, viram que faltavam várias crias mas como normalmente muitas não vingam continuaram a alimentar este insaciável glutão e assassino. Afeiçoaram-se ao filho único apesar de notarem uma diferença entre eles e a sua descendência e que este crescia até um tamanho maior que o seu. Quando o cuco estava pronto para o seu primeiro voo, os piscos estavam exaustos e só aí se aperceberam do seu erro que haviam cometido. Foi tarde de mais. Estes pássaros não quiseram mais procriar, alimentar-se e deixaram-se morrer.

Percebes?

Disse-lhe que não e fui-me embora.

1 comentário:

Anónimo disse...

... seja o rouxinol a cantarolar ou o abutre á espera da morte alheia... eles não estão ali pela simples razão imediata da sobrevivência... quando a pessoa consegue perceber o verdadeiro motivo visceral que mantém alguém perto, aquela razão impronunciável que faz parte de um segredo sentido e que perderia o sentido se ganhasse a forma de palavras... só aí não se comete o possível erro de afastar esses que não querem apenas comer... :)(velvet_coldness)