2008-03-14

Dia 164

Dia 164:
A pele engelhada e flácida encarcera o que resta dos órgãos, músculos e ossos. O sangue tem dificuldade em chegar às extremidades dos meus membros.
Não me excito.
Tenho dificuldade em andar e o derrame cerebral que recentemente me lesou não me deixa praticamente mover o pé esquerdo e o pé direito recusa-se a desempenhar a tarefa do seu irmão. Tenho duas bengalas para me suportar, para andar. Estou sozinho.
A vida tornou-se ingrata. Não, ela nunca me foi grata.
Pelo meu corpo espalham-se marcas, nódoas, fruto das quedas que me lembram constantemente a minha condição de velhice.
Estou apoiado no semáforo. Quero atravessar. Observo em vão as luzes que vão alternando entre o verde e o vermelho enquanto espero que alguém me ofereça ajuda. As pessoas passam tão rápido, nem reparam em mim. Um suspiro obriga-me a pedir ajuda a alguém.
Peço, imploro a quem de aspecto respeitável aqui passa para me ajudar. Ou estão com pressa ou ignoram-me. Em último recurso e após vários minutos de desespero peço a um jovem com péssimo aspecto para me ajudar. Incrivelmente foi a única pessoa que sem pensar duas vezes se dignou a ajudar este pré-cadáver.
O rapaz era EU. Noto que já lhe começa a escassear a energia e deve cometer demasiados excessos, alguns que nem mesmo eu devo ter cometido. Não vou julgá-lo…
O sinal fica verde e ele amparando-me quer com força para sustentar o meu peso, quer com delicadeza para não me partir ajuda-me a atravessar a rua. São poucos metros para o outro lado mas não impede o sinal de mudar para vermelho, verde, vermelho e novamente verde. Os carros esperam com os seus condutores fitando-me com vontade de buzinar e só não o fazem porque se lembram do pai que já morreu ou do avô que já quase tinham esquecido. O jovem parece querer acelerar-me um pouco mas sou incapaz e suplico-lhe para não me deixar cair. Ele sorriu e disse baixinho:
-“Não. O senhor está seguro.”
Num dos sinais verdes passou uma senhora com a elegância de uma vaca gorda, certamente abastada de dinheiro, a quem tinha pedido ajuda minutos antes e ela recusou porque estava “com pressa”. Ao passar por nós, fixou com desdém o rapaz e pronunciou com um sorriso hipócrita na cara:
-“Vê, já arranjou um amigo!”
O rapaz sorriu timidamente enquanto eu murmurei umas palavras que ela devia ouvir em voz alta. No outro lado da rua pedi ao rapaz para me aproximar de um poste para me agarrar. Ele gentilmente deixou-me lá, perguntou se precisava de mais alguma coisa e à minha resposta negativa seguiu o seu caminho.
Havia algo que lhe gostava de dizer mas não pude.
Queria dizer-lhe que um dia todos vão ser aceites como são com defeitos e qualidades e que a vida não é uma coisa má.
Não me atrevi a enganá-lo…
Devia avisá-lo para que ele soubesse que não vale a pena envelhecer quando sabemos que para isso vamos ver todos os nossos conhecidos morrer, vamos também nós adoecer e morrer sozinhos, desamparados.
Queria dizer-lhe que sei o que é ser ignorado e segregado, que as pessoas que fazem isso connosco estão erradas.
Não o quis matar…
Estou novamente à espera para atravessar a rua. Esta não tem semáforos e não me vejo para me pedir ajuda. Todos passam por mim tão rápido e quase me derrubam…
Pé ante pé arrasto-me…
A senhora gorda volta e dá-me o braço. Puxa-me demasiado rápido e impaciente larga-me no centro… desaparece…
Eu caio… Um carro aproxima-se a alta velocidade…
Acordo…

Sem comentários: